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Viver a vida ou gerir a vida?

Interrogo-me, desde logo, sobre a interrogação que intitula esta reflexão, mas assumo o "ou" como algo que determina uma opção, uma opção entre uma acepção holística da vida e uma outra, estafada no exercício de determinar um sentido de oportunidade à própria vida. Se no primeiro caso, o sentido é uma propriedade sentir, atribuir sentido à vida é procurar compreendê-la, não segundo o princípio de uma dádiva, mas segundo o princípio de uma interpretação no segundo caso, que curiosamente se casa(rá) melhor com a ideia de uma predestinação, o exercício terreno de "viver" é, sobretudo, o esforço oportunista e tácito de transformar o exercício da vivência num exercício superiormente legitimado, que importa accionar.
Frágil divisão (ficam-nos todos os outros "ous" susceptíveis de serem imaginados), que quer sobretudo questionar um sentido, não estritamente pessoal, mas sobretudo enquanto projecto social.
Arrisco assim algumas convicções sobre esta deambulação em torno do social e, sobretudo, em torno de movimentações de massas que, diria, procuram um sentido colectivo. Afasto-me deliberadamente do 25 de Abril - porque as manifestações colectivas então registadas tinham a força e a explicação de uma ruptura com um passado, independentemente de se vislumbrar "que" futuro adviria dessa movimentação colectiva para me centrar em tempos, acontecimentos posteriores, ilustradores de uma movimentação colectiva aparentemente partilhada, se não por todos, pelo menos resultante de uma espécie de "impulso" colectivo no qual muitos se reviam.
Dois acontecimentos, fundados em diferentes explicações, parecem ter caracterizado esta movimentação colectiva aparentemente partilhada: o primeiro, a "causa Timor" - que Eduardo Lourenço melhor explicará do que eu - mas que parecerá ter remetido para a procura de superação de um passado identitário (enquanto nação) pelo exercício do compromisso com aqueles que, se em determinado momento nós colonizamos, legitimamente entendemos hoje defender para que não voltem a passar pelo mesmo processo; o segundo, a "causa bandeira", provocada inicialmente pelo fenómeno futebol, mas que pareceria simbolicamente revelar a procura de uma qualquer identidade nacional, arqueada nos seus símbolos (à bandeira acrescentou-se o hino), mas reveladora porventura de uma desagregação do espaço colectivo, expressa particularmente por um conceito de "desenvolvimento" que cada vez mais parece antagonizar as partes constitutivas de um mesmo espaço-nação.
Estes dois acontecimentos, pelo impacto e pela extensão que tiveram, parecem incontornáveis no exercício de compreensão de um sentido colectivo que mais se aproxime do viver a vida do que, do gerir a vida. Efectivamente, é a natureza da sua (importante) adesão espontânea que parece revelar um sentido de "colectivo", e é a necessidade da sua afirmação que parece evidenciar o quanto, provavelmente, ele se vai perdendo.
Situo um terceiro acontecimento relevante por ter esta dimensão do colectivo igualmente expressa, embora em moldes diferentes e que é a "marcha da indignação", protagonizada no passado dia 8 de Março pelos professores (por cerca de dois terços dos professores portugueses). Não haverá nesta movimentação nada de estritamente espontâneo, acredito mesmo que a contestação ao regime de avaliação corporiza sobretudo um mal-estar que transbordou a capacidade de resistência a uma culpabilização imputada insistentemente aos professores sobre todos os males do sistema de ensino ao ponto de alguma crítica confortada dizer que "basta de Ministério dos Professores, isto é o Ministério da Educação" e, embora se trate de uma classe profissional, os motivos que estão na origem desta grandiosa mobilização são, certamente diversos.
Mas é o facto em si, indesmentível, que esta mobilização revela, que deve ser objecto de compreensão; é o acontecimento, pelas suas dimensões, que é insusceptível de ser ignorado. Parece revelar-se uma incomodidade generalizada, e pareceria pouco resumir-se a interpretação deste facto a uma qualquer defesa estrita de direitos adquiridos, como se mais nada fosse evidenciado pela movimentação dos professores.
Não é pouco lembrar a relevância que todos os governos atribuem à educação nas suas estratégias desenvolvimentistas, como não é pouco recordar o acréscimo de responsabilidades que a sociedade, no seu todo, gradualmente atribui à escola; as movimentações dos professores não são relevantes porque eles são muitos, são relevantes porque o contexto do seu trabalho é um excelente barómetro de bem ou do mal-estar social. A centralidade do papel da escola na organização social, se é discutível à luz do modelo de sociedade que construímos, não deixa por isso de deixar aos professores um protagonismo e uma percepção da realidade de uma acuidade particular.
É nesse sentido que me parece possível estabelecer um paralelismo entre este acontecimento e os dois anteriormente citados.
É este acontecimento, com as suas particularidades, que me permite divagar num sentido quiçá mais filosófico para a questão que intitula esta reflexão. Quando leio jornais, quando respeitosamente procuro compreender os posicionamentos dos diversos opinion makers que pululam a nossa praça, quando atento nas definições e nos discursos dos nossos políticos, encontro um diapasão mais ou menos comum, que se prende com uma forte tentação moralista; vivemos numa sociedade sem moral, esse é o nosso grande drama, e há que moralizar esse povo imoral (que ninguém saberá bem quem é), e há que o moralizar pelo sentido do sacrifício (que me lembre, andamos a fazer sacrifícios há cerca de oito anos sem que se perceba porquê ou qual a finalidade desses sacrifícios), e há, em definitivo, que fazer sentir a esse povo que há que interiorizar essa moralização para ultrapassar todos os problemas.
O medo de, de facto deixar os cidadãos, nos seus diversos contextos de trabalho, de vida, de vivência serem protagonistas, partes interessadas da construção do seu futuro, medo fundado quer nas opções políticas, quer numa opinião consabida (embora interpretada apenas por alguns), anquilosa incontornavelmente o próprio crescimento da organização social, faz irremediavelmente as pessoas baixarem os braços. Por isso não assistimos à contestação permanente, mas a espasmos até, regra geral, mais emocionais do que propriamente racionais (mas logo alvo da moralidade das canetas aguçadas de tantos comentadores).
E é triste que assim seja, porque gerir a vida fica muito aquém de viver a vida, quanto mais não seja porque esta segunda equação parece, definitivamente, mais democrática.

Henrique Vaz


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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