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Investigação com crianças: O que aconteceu com o Mar do Bairro Beira-Mar?

A experiência de investigação com crianças nasce da busca por possibilidades de organização do trabalho pedagógico, partindo da assunção da cidade como espaço alfabetizador pela descoberta da palavramundo. A nossa escola fica no bairro Parque Beira-Mar, na cidade de Duque de Caxias e, apesar do nome não se vê o mar nem há características de uma localidade à beira-mar.
Então, por que esse nome? O que aconteceu com o nosso Mar? O presente questionamento mobilizou a nossa turma do Ciclo de Alfabetização a recompor o passado do bairro e com isso escrever as suas histórias, pessoais e coletivas. Nosso cotidiano se configura pelos desdobramentos gerados da busca por pistas que nos ajudem a rememorar o passado e pelas formas de aprender a escrever para registrar nossas descobertas.
A sala de aula passa a funcionar como um ateliê quando resgatamos sua possibilidade de invenção, ao ver as crianças lidarem com linguagem de forma exploratória, sem uma relação hierárquica com o escrito, com o espírito benjaminiano de aventurar-se pelos signos, pelas possibilidades de expressão e de invenção de suas próprias histórias. A procura por indícios nos obriga a pensar coletivamente no que fazer para decifrar o nosso mistério. Assim, nossas aulas exploram aulas-passeio, análise de fotografias e imagens do bairro atuais e antigas. Nosso estudo inclui o registro dos trajetos diários das crianças pela cidade e a criação de um caderno volante para compor as rotas migratórias das famílias, além das entrevistas com morador@s antigos que possam nos dar depoimentos sobre o desaparecimento do mar.
Outra ação presente é a leitura diária de Bisa Bia Bisa Bel que alimenta nossa imaginação e desejo de descobrir o passado. A beleza do conto nos envolve. Cada Papo Explicativo de Isabel com sua Bisa potencializa nossa busca, ora por fornecer elementos para compor nossas perguntas, ora por aguçar nossa imaginação ao nos levar para outros tempos, pelas diferentes formas de ser. Depois da leitura coletiva de um papo explicativo surgiu a idéia de promover um chá para as avós, para perguntá-las sobre a história do bairro ao ter nosso próprio Papo Explicativo. Nossos esforços se concentraram no Chá das avós, passamos a semana envolvid@s com os preparativos: convites, leitura de poesia e cardápio do chá. O coletivo resolveu fazer um pudim de pão para servir às nossas convidadas, o que barateou os custos do evento e representou uma forma de reempregar as sobras de pão. Elaboramos um roteiro de perguntas para orientar nossa investigação e reunimos algumas fotos antigas para dar suporte aos relatos das avós.
Chegou o grande dia, as crianças em roda puxavam a conversa sobre o mar e a vida no tempo das avós que iam revelando as dificuldades e as delícias por elas experimentadas. Os relatos versavam sobre a lama, ou melhor, o reduzido mangue costeiro da Baía de Guanabara[1], aterrado para dar lugar as ruas, casas, empresas lixões...
A praia do bairro começou a desaparecer devido aos sucessivos aterros que tiveram início no processo de colonização que se estendeu pelo século XX. O que prejudicou ou encobriu a orla da cidade de Duque de Caxias, escolhida por ser um lugar "feio" composto por brejos e lagunas de água salobra. Foram séculos de agressão ambiental, caracterizados por desmatamento, aterros, ocupações de áreas alagadas e despejo de lixo industrial.
Os relatos foram provocados pelas perguntas das crianças que mergulharam nos repertórios das memórias de suas avós. Os mapas das infâncias atuais e passadas se entrecruzaram, o que permitiu a ligação do espaço vivido pelas crianças com a baía que parecia um lugar distante, o beira-mar reaparece como patrimônio. O puxar pela memória forneceu os fios para compor a narrativa/descoberta do passado, revelando o ponto de vista das crianças que concentram suas entrevista sobre o brincar.
As avós narraram os seus espaços de infância, da época que se subia o morrinho e via-se o mar, do tempo de brincar pelos matos e catar caranguejo. Outro espaço que provocou as crianças foi o quintal, identificado como um lugar seguro para a brincadeira, que possuía árvores que serviam de refúgio para as crianças arteiras, o quintal abrigava a brincadeira de casinha junto às árvores. No quintal eram feitas as bonecas de pano e de milho. Ele era o lugar das histórias, onde se acendiam fogueiras para assar batata doce e aipim e entorno delas o pai de Dona Esmeralda contava história para toda a vizinhança.
A atenção das crianças se concentrou nas narrativas do espaço que provocou o deslocamento para o brincar no tempo das avós, a consciência da perda desse espaço se tornou evidente e era compensada no pelos pedidos dos pequenos por :
- Conta outra vez, como era o seu quintal?

[1] A bacia da Guanabara é considerada um patrimônio natural estratégico com 300km2, com profundidade de até quatro metros, suas margens abrigam quase 11 milhões de brasileiros distribuídos 15 municípios. Na baía deságuam 35 rios e córregos.

Luciana Alves


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Luciana Alves
GRUPALFA - Grupo de pesquisa em alfabetização das classes populares. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro
Luciana Alves
GRUPALFA - Grupo de pesquisa em alfabetização das classes populares. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro

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