Numa daquelas estranhas coincidências de que são pródigos os romances de Paul Auster eu tinha na minha turma duas alunas que eram irmãs só por parte do pai. Tinham a mesma idade, com diferença de um mês e embora se conhecessem e soubessem que eram irmãs não conviviam. Mas toda a turma sabia e rapidamente me puseram ao corrente da situação. A Vanessa, percebia-se, tinha sido um pouco o resultado de um acidente não esperado. A Matilde, pelo contrário, era a segunda filha de um casal e a mãe não queria nem ouvir falar da existência da Vanessa. As duas irmãs representavam o paradigma tão explorado das histórias infantis da irmã rica e da irmã pobre. A Matilde trazia roupas de marca, de qualidade, vestia com gosto e sobriamente. A Vanessa fazia reluzir os laços com dourados, trazia as roupas mal combinadas, as marcas de contrafacção compradas nas feiras, os sapatos nem sempre apropriados para a época - uns sapatos de verão podiam arrastar-se infinitamente durante o Outono ou até no Inverno - camisolas maiores ou mais pequenas do que o seu tamanho. A Vanessa tinha gestos pouco comedidos e por vezes desastrados, os cabelos sempre pouco penteados e baços, as unhas pouco limpas mas um riso doce e um olhar que comunicava. A Matilde tinha gestos e voz harmoniosos de quem tem actividades de dança e música, cabelos e unhas muito limpos e arranjados, sorriso educado e um olhar seguro e contido. Também a falarem se notava claramente a diferença, quando mais não fosse no sotaque, nos ditongos compridos e prolongados da Vanessa, na articulação correcta e limpa da Matilde. Os trabalhos, na aula e feitos em casa, não apresentavam à partida grandes diferenças mas sempre que se faziam referências a outros troços de realidade Matilde estava sempre mais à vontade para os reconhecer e localizar. Os cadernos de Vanessa apresentavam alguns maus-tratos e por vezes tinham pequenas manchas de dedos menos limpos. Os cadernos de Matilde não tinham uma ruga, uma mancha, uma dobra. Os seus livros estavam encapados, rigorosamente limpos, e nunca lhe faltava material para trabalhar. Ora, era uma antiga tradição que nós tínhamos na escola: no dia de aniversário os alunos podiam trazer um bolo de casa e no fim da aula cantávamos parabéns. Partia-se o bolo e eu distribuía uma fatia a cada aluno à saída da aula. Eu oferecia-lhes uma pequena lembrança (um lápis, um postal?). Aos que faziam anos nas férias eu deixava-lhes também um pequeno presente. No primeiro ano dos quatro em que iríamos trabalhar juntos, o primeiro aluno a fazer anos foi a Matilde. Trouxe um belo bolo de chocolate, com as respectivas velas. No fim da aula cantámos parabéns, partiu-se o bolo e eu ia distribuindo as fatias a cada aluno que saia. A Vanessa, que tinha ficado para o fim, preparou-se para sair mas não ia pegar na sua fatia. Chamei-a e insisti para que pegasse na sua fatia de bolo. No fim perguntei-lhe porque não tinha pegado no bolo. Ela respondeu que não sabia que podia pegar porque o bolo não era dela mas da Matilde. Expliquei-lhe então que era um bolo de aniversário e como se costuma fazer uma festa e repartir um bolo: - Não costumas fazer um bolo nos teus anos? - Não professora, eu até nunca sei quando faço anos, quer dizer, eu sei o dia que é, mas não dou nunca conta. Eu nem tinha nunca visto um bolo de anos. Não sabia o que era um bolo de anos. Eu ouvia falar mas nunca tinha visto, foi só aqui? A Vanessa passou a ter o seu bolo de aniversário durante todos os anos que esteve na escola. Mas muitas outras coisas continuavam e continuarão a fazer a grande distinção daquelas duas irmãs e essas diferenças, a escola só parcialmente poderá esbater se não as aprofundar ainda mais.
Angelina Carvalho
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