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A Senhora Dra., a minha destemida farmacêutica que...

Para o seu marido, José Gomes Martins

Jovens, acontece... um dia, encontramos a pessoa amada, sem darmos por isso. Na rua, numa sala de chá, em casa de outras pessoas, na Faculdade, ou ao entrarmos a comprar um artigo numa qualquer pastelaria ou confeitaria (ferretearia?). E de repente encontramos a pessoa, que, sem sabermos, nos vai acompanhar para toda a vida, talvez, quem sabe para o resto da nossa vida.
Jovens, o amor é um segredo, não sabemos quando, nem como, um dia, encontramos, gostamos, namoramos e casamos ou não. Depende dos hábitos, crenças e costumes. Se acreditamos que existe uma outra vida após a vida histórica material, essa união é um sacramento, uma bênção. E, mesmo sem acreditarmos, é um sacramento entre dois seres. Não pensem, meninos e meninas, que é o oficiante da cerimónia quem faz a união desses dois seres que se amam: é entre eles próprios que a cerimonia é feita e quem preside à cerimónia, é apenas testemunha das promessas trocadas entre os que se amam, testemunham essa troca impossível de afectividade, carinho e promessas. Impossível, digo eu, porque viver a dois é um prazer raro nestes dias. Impossível, porque prometer amor e guardar esse carinho apaixonado, custa silêncio, custa ver, ouvir e calar, custa aceitar que a pessoa dos nossos sonhos e da nossa alegria durante o dia esteja afastada de nós, a trabalhar por exemplo. À noite, é falar, olhar, contar os acontecimentos, tratar do fruto da paixão, normalmente crianças que começam a nascer, esses sempre esperados rebentos, essa parte de nós.
Parte de nós, por serem concebidos após os beijos, logo depois das zangas e factos diferentes, após debate ou não sobre o que pensamos e acreditamos ou deixamos de acreditar. O amor é um caminho semeado de espinhos que tudo vence, que ganha tudo, até o que parecia impossível, ultrapassa as diferenças de ideias e opiniões, faz turno para tomar conta dos resultados da paixão se chorarem durante a noite. Acaba com a arrogância, faz de nós pessoas meigas, até tímidas, especialmente no dia que conhecemos a pessoa que se compromete a acompanhar-nos até a morte.
Nem é fácil nem simples. Muito menos simples, se temos trabalhos diferentes e objectivos que fazem de nós pessoas que olham a vida em sentidos opostos. Mas, os sentimentos permitem-nos ultrapassar as diferenças. O amor nem sempre é igualdade, o consentimento mútuo, o estar sempre de acordo. Foi o que aconteceu comigo, um dia, vi a mulher dos meus sonhos e, de imediato, vire-me para um amigo, hoje Reitor duma Universidade, e disse: "Vês essa rapariga que está ai? Vou casar com ela!" O fogo da paixão resultou em duas raparigas, as nossas filhas, e por enquanto, em dois netos: um rapaz e uma rapariga. Longe, distantes, mas os nossos descendentes na mesma, essa, a nossa imortalidade. E casei, até o dia de hoje, já lá vão 41 anos....
Mais uma vez, esse é o verdadeiro amor. Como o de Maria Manuela Mesquita Duarte e o amor da sua vida, o proprietário dessa mercearia, ele próprio a saber imenso dos seus produtos, estudado como era. Ele e a sua mulher, a minha destemida farmacêutica. Destemida, porque está sempre presente, não larga o seu trabalho, está sempre ao pé do seu trabalho, sai apenas uma vez ao dia para beber o seu único café, porque quando o seu grande amor, que tive o prazer de conhecer no café, entrou em doença profunda, irrecuperável, não abandonou nem farmácia nem Hospital.
Íamos falando ao telefone, ia entre as horas de trabalho para tratar do seu Marido, porque, como diriam Mélanie Klein e Alice Miller, essas minhas santas que sempre invoco para basear a teoria do meu texto, o amor não é uma obrigação, é um sentimento irremediável, irreparável, aos nos subordinar, com carinho e cuidado, a outras pessoas. Como a minha destemida farmacêutica ao seu Marido. O sofrimento deles, foi uma lição para mim. Dessas que ninguém fala nas aulas, mas que devia ser referido como a pedra fundamental da interacção social.
Obrigado, minha senhora, aprendi consigo a confrontar a dor....e, essa dor confrontada sem medo, transfiro aos jovens para os quais escrevo este texto dedicado ao seu marido, que está sempre consigo.....e na presença das filhas e dos netos....esse fruto de dois....

Raúl Iturra


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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