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" Não se podem fazer reformas contra a vontade maioritária das pessoas"

José Matias Alves, professor do ensino secundário e ex-director do CRIAP-ASA:

José Matias Alves é licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Mestre em Ciências da Educação, na especialidade de Políticas Educativas e Administração Escolar, pela Universidade do Minho. Professor efectivo do ensino secundário, ao serviço na Escola Secundária de Gondomar, foi, até há pouco tempo, director do CRIAP-ASA e do jornal Correio da Educação. É também investigador e docente convidado pela Universidade Católica do Porto.
É autor, entre outros, dos seguintes livros: "O Primeiro de Todos os Ofícios", "A Escola e as Lógicas de Acção", "Sucesso na Escola: um Guia para os Pais", e "Organização, Gestão e Projecto Educativo das Escolas: Contratos de Autonomia, Aprendizagem Organizacional e Liderança", este último em parceria com Manuel Jacinto Sarmento e Angelina Carvalho. Nesta entrevista, Matias Alves mostra-se bastante crítico relativamente à actuação do Ministério da Educação e à forma como este conduziu o processo de implementação do novo modelo de avaliação dos professores e da Lei de Autonomia e Gestão das Escolas, e explica porquê nas páginas que se seguem.

Antes de abordarmos questões mais actuais, o que tem sido a política educativa em Portugal que justifique, de algum modo, o desencanto sentido actualmente pela larga maioria dos professores portugueses?

Há várias interpretações possíveis para esse facto. Um dos principais motivos, no entanto, penso que assenta numa política educativa que elegeu os professores como alvo. E elegeu-os como alvo porque se fez, a meu ver, um diagnóstico errado, que associa as causas essenciais do atraso educacional português e os maus resultados a nível internacional à ineficácia dos professores, ao seu excessivo poder e a um modelo de gestão que assenta ainda essencialmente numa lógica democrática. Foi partindo deste pressuposto que se desencadeou todo um conjunto de medidas que visaram atingir os professores na sua imagem social, na sua dignidade profissional, no seu horário de trabalho ? intensificando-o e aumentando-o muito para além das 35 horas ?, complexificando o exercício profissional, criando um estatuto que lhes retirou um conjunto de direitos fundamentais ? sob o pretexto de que se tratava de um conjunto de regalias ?, culminando com um novo modelo de autonomia e gestão das escolas. Apesar de não haver nenhuma evidência empírica que demonstrasse o seu falhanço ou a sua insuficiência, quis-se passar a ideia de que o problema estava também aqui [no modelo de gestão das escolas], que o conselho executivo tinha poucos poderes, e que, como tal, era necessário concentrar poderes numa figura, que a eleição de representantes a nível departamental era também causa de ineficiência, etc. Toda uma estratégia que, no fundo, visou encostar os professores à parede e colocá-los na ordem. Para este diagnóstico feito pela actual equipa ministerial contribuiu também a apreciação do ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, que chegado de uma visita à Finlândia afirmou que os professores portugueses trabalhavam pouco por comparação com os finlandeses? Opinião que, como ficou mais tarde demonstrado, se baseava em falsos pressupostos.

Concorda com a opinião de que algumas das mudanças previstas no novo estatuto eram necessárias? Ou poderiam ter ido num outro sentido?

Concordo que era necessário introduzir mudanças, dando um carácter mais público à escola pública. Eu sou da opinião de que a escola pública pode e deve fazer melhor junto de quem mais precisa dela. Porque a escola pública não pode fechar as portas a ninguém, é isso que a define, e tem de promover o máximo possível de igualdade de oportunidades não só no acesso mas sobretudo no sucesso. Apesar de existirem questões sociais e políticas que ajudam a explicar o facto de ela estar longe de cumprir este objectivo, continua a ser imperativo que a escola pública seja mais pública no sentido de servir melhor os cidadãos. Mas não se atinge o objectivo de servir melhor os cidadãos lançando uma ofensiva contra os principais actores e autores da educação portuguesa. É contraproducente. A investigação nesta área já demonstrou que não se podem fazer reformas contra a vontade maioritária das pessoas. Dessa forma estarão condenadas ao insucesso. Já estiveram no passado e estarão se persistirem neste caminho.

Que consequências mais imediatas poderão advir deste novo estatuto?

Ninguém consegue prever com rigor as consequências que o novo estatuto poderá implicar. Mas eu diria que previsivelmente irá aumentar a conflitualidade no interior das escolas. A conflitualidade em si não é má se gerar dinâmicas de melhoria, mas é negativa se gerar dinâmicas de desalento, desânimo e desvinculação profissional. Quando toda a investigação demonstra que devem existir dinâmicas de cooperação e de entreajuda como forma de resolução dos problemas educativos, um estatuto que privilegia dinâmicas de competição intraprofissional e define de forma burocrática quotas de acesso e de progressão nas carreiras, é evidente que isso criará dinâmicas de competição. Eu também não tenho nada contra a competição, desde que ela seja justa e equitativa.
O problema é quando a competição é injusta e regulada por normas que são cegas em relação à realidade. Eu não posso aceitar que uma escola com um excelente corpo docente, excelentes processos e resultados educativos, não apenas aferidos pelos exames mas por outros indicadores, esteja condenada a ter uma quota de acesso e progressão na carreira igual a outra escola com processos e resultados de má qualidade. Certamente que não poderão ser imputados apenas a si própria, mas o facto é que origina uma situação injusta e discriminatória. Prevejo, por isso, um aumento da conflitualidade, de uma competição tendencialmente injusta e de um certo mal-estar que, com o tempo, tenderá a diluir-se, porque eu acredito que as escolas e os professores são inteligentes ao ponto de adoptarem estratégias no sentido de reduzirem os níveis de ansiedade e de esgotamento, quer individual quer organizacional, e encontrar pontos de equilíbrio. Mas com custos graves em termos da auto-imagem profissional e da própria relação pedagógica com os alunos, vítimas de uma política que faz dos professores os principais responsáveis pelo insucesso, quando o principal responsável pelo insucesso relativo da educação são as políticas educativas. E digo relativo porque, apesar de todas as dificuldades, de todos os subsistemas sociais do Estado, o educativo é de longe aquele que melhor funciona na sociedade portuguesa. E a sociedade portuguesa tem uma enorme dívida de gratidão em relação à escola pública e ao serviço que ela presta a praticamente dois milhões de portugueses, diariamente, sem filas de espera.

Avaliação dos professores "punitiva" e "discriminadora" Que comentário lhe merece o novo modelo de avaliação dos professores? Quais são os aspectos positivos e negativos do novo documento?

O aspecto positivo é a ideia da avaliação em si mesma. De facto, os professores não tinham, formalmente falando, um sistema de avaliação. Mas também não o tinham porque o poder político nunca o configurou, negociou e implementou. Era por isso necessário criar um sistema de avaliação mais justo ? porque aquele que existia tratava do mesmo modo profissionais dedicados e profissionais que faziam deste ofício um mero passatempo e que não actualizavam os seus saberes ? que conseguisse incentivar os desempenhos insuficientes, estar ao serviço do desenvolvimento profissional e da melhoria das práticas e das aprendizagens dos alunos, reconhecendo o mérito, não numa lógica puramente individual mas colegial.
Em resumo, sou favorável a um sistema de avaliação justo, rigoroso e exigente para todos: para os professores, para os órgãos de gestão das escolas, para o ministério, para a administração e para os próprios pais e encarregados de educação. Porque não posso exigir melhores resultados educativos centrando apenas nos professores a avaliação das práticas. O problema está não no princípio mas sim na materialização do princípio. Pensar nele numa lógica sobretudo formativa e menos punitiva e discriminadora, que, infelizmente, acabou por prevalecer.

A principal crítica é sobretudo dirigida ao modo como foi conduzido todo este processo. Qual é a sua opinião?

Na minha opinião ele foi conduzido de forma precipitada e irrealista. É certo que se assistem agora a alguns sinais de recuo, com a tutela a reconhecer ser impossível cumprir o que ela própria decretou, revelando um profundo alheamento da realidade. O ministério percebeu que tinha de moderar este ímpeto impositivo, prepotente e autocrático. Não é nenhum demérito recuar quando se reconhece que se errou, embora o ministério nunca admita que errou ? quer na planificação, quer na calendarização, quer na formação dos professores e dos supervisores, etc.

Mas esses recuos não irão alterar o fundamental?

Sim, isso já foi reafirmado pelo ministério. Mas pelo menos deveria retirar do sistema aquilo que é mais pernicioso, ou seja, uma intensíssima carga burocrática traduzida em papéis, formulários, fichas e grelhas que irá transformar as escolas em agências operadoras de preenchimento de milhares de papéis e que, na prática, não irão ter impacto significativo na melhoria das práticas.

A quem deve competir a avaliação: aos próprios professores ou a um órgão exterior às escolas?

Há quem defenda que a avaliação deva competir a um órgão externo, nomeadamente ao ensino superior. Na minha opinião, deve competir aos próprios pares a responsabilidade pela regulação da profissão. Ela nunca deverá competir nem aos burocratas do Ministério da Educação nem ao ensino superior, aos quais não reconheço nem legitimidade nem competência para o fazer. A avaliação feita pelos pares é positiva para a profissão porque reforça, ou deveria reforçar, a coesão profissional, as dinâmicas de heteroformação e as dinâmicas de construção de confiança no interior das escolas. Actualmente existe um défice de regulação nesta área, havendo mesmo sinais preocupantes de completa desregulação no interior das escolas. Mas existem também bons sinais de reforço da unidade, da coesão e da cooperação na construção de práticas profissionais muito mais informadas, consistentes e coerentes.

E no que se refere à avaliação das escolas?

A avaliação das escolas deve ser realizada tendo em conta duas dimensões. Por um lado, enquanto organização, ela deverá ser capaz de se auto-avaliar periodicamente, distinguindo os seus pontos fracos e pontos fortes, sabendo se está a atingir os seus objectivos, de que forma pode melhorar, etc. E neste processo de avaliação interna deverá ouvir os alunos, os professores, os funcionários, os pais ? já para não falar de outros actores, mas obrigatoriamente os que referi. Depois, dada a missão social e a imagem pública da escola, é também útil que haja uma avaliação externa, que neste momento muitas delas estão a pôr em prática.
Um olhar externo ajuda sempre a criar um contraste, fornecendo informações muito importantes para a sua auto-avaliação, numa lógica de complementaridade.

Qual é a utilidade prática de mecanismos de avaliação como os exames nacionais?

Os exames são tendencialmente um mau instrumento de aferição da qualidade do sistema. No actual momento, porém, são imprescindíveis na medida em que o sistema educativo precisa de um indicador que permita aferir sobre o funcionamento das escolas e garantir a sua credibilidade social. Desejavelmente, deveria haver lugar a outros indicadores, nomeadamente as avaliações internas e externas a que já me referi, cujos resultados deveriam ser mediatizados de forma a permitir a existência de elementos informativos mais fiáveis e mais válidos sobre o funcionamento das escolas e, desse modo, gerar na sociedade portuguesa um maior grau de confiança nas instituições educativas.
Apesar de estarem longe de conseguirem avaliar aquilo que os alunos sabem, e de serem até em muitos casos instrumentos injustos de graduação e selecção dos alunos, não sou, apesar de tudo, desfavorável à realização de exames nacionais, mas antes contra o facto de esse ser o único elemento de aferição da qualidade do sistema. Teríamos de caminhar, na minha opinião, para uma maior inserção territorial das escolas, para uma maior informação local sobre a qualidade dos estabelecimentos de ensino e reforçar as dinâmicas de avaliação externa numa lógica de desenvolvimento e melhoria do serviço prestado e não de sanção e de etiquetagem.

Gestão e autonomia das escolas quer "pôr os professores na ordem"
Referia no início desta entrevista que o novo modelo de gestão e autonomia das escolas é o corolário de uma política educativa que visa "pôr os professores na ordem". Pode explicar melhor o sentido desta afirmação?

Sim, de facto era essa a intenção da proposta inicial apresentada pelo ministério, colocando nas escolas um mandatário do poder político na figura de um director, um cargo unipessoal com poderes largamente reforçados, impedindo, por exemplo, que um professor assuma a presidência do Conselho Geral e retirando a possibilidade de os professores elegerem os coordenadores dos departamentos. Há aqui, claramente, uma mitificação da figura do chefe neste projecto. Um chefe que vem salvar as escolas da sua ineficácia e um claro reforço da vinculação ao centro político, com a possibilidade de este poder ser demitido por despacho do ministro ou do secretário de Estado.
Esta era a proposta inicial, que deixou de estar na mesa após um parecer muito crítico do Conselho das Escolas e do Conselho Nacional de Educação, e que eu pessoalmente considerava como ofensiva para a dignidade dos professores e penalizadora para o funcionamento eficaz das escolas. O ministério retrocedeu nestas matérias, e ainda bem que o fez, porque ou persistia na posição inicial e governava contra tudo e contra todos ou entendia os sinais que de muitos sítios lhe chegaram e revia as suas posições.
Considero esta atitude uma vitória da democracia, porque nos diz que vale a pena o debate e o confronto de ideias.

Considera que faz sentido a presença dos pais e das autarquias em órgãos como o Conselho Pedagógico?

Em termos pessoais, não me parece uma questão muita significativa. Em termos estritamente técnicos, creio que não faz sentido. Isto, porque o Conselho Pedagógico é um órgão eminentemente técnico. Os pais têm direito a estarem representados na escola pelo facto de serem encarregados de educação e não por serem técnicos de educação. Por isso é que se reforça a sua presença no Conselho Geral, que, espero, seja também sinónimo de um maior sentido de responsabilidade. Na minha opinião, um dos problemas da escola hoje é o facto de haver um défice de responsabilidade das famílias e dos pais. Eu sou favorável ao reforço da presença da comunidade na escola e do seu poder, desde que essa presença signifique maior responsabilidade. Porque há, ao mesmo tempo, um excesso de responsabilização da escola e uma desresponsabilização social face à escola. Assim, tudo o que caminhe no sentido de responsabilizar a sociedade e os seus elementos quanto ao que se passa na escola é, quanto a mim, uma medida positiva.

Não faria mais sentido estes dois actores da comunidade educativa estarem representados em órgãos como os Conselhos Municipais de Educação?

Sim. Nomeadamente os municípios, cuja representatividade deveria ser assegurada através desses órgãos e não através da presença de técnicos das autarquias nos conselhos gerais. Faz muito mais sentido que seja o presidente do Conselho Geral a integrar o Conselho Municipal de Educação.

Recentemente, João Barroso, professor e investigador da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, emitiu um parecer sobre esta matéria, a pedido do próprio Ministério da Educação, no qual defendia, em linhas gerais, uma contratualização mais livre e baseada nos contextos locais. Qual é a sua opinião?

Concordo inteiramente com a análise do professor João Barroso. Eu tenho consciência dos riscos que a autonomia acarreta, nomeadamente pelo facto de estar dependente de quadros mentais, ideológicos e do posicionamento face à realidade, mas sou claramente favorável a uma descentralização do poder face às escolas e às comunidades educativas ? que ainda não existem de facto, mas que se torna desejável construir passo a passo ? e a soluções que se adequem à realidade local e não a soluções universais como forma de resolução dos problemas. Só assim é que as pessoas crescem, tendo poder de decisão, aprendendo com os erros, não sendo penalizadas por errarem mas aprendendo e assumindo responsabilidades e comprometendo-se.
O grande problema das escolas, a meu ver, prende-se com o escasso compromisso existente, quer por parte dos professores, quer dos alunos, quer dos pais, quer dos actores locais. É preciso um novo compromisso relativamente à educação, que deverá envolver, em graus diversos, todos estes protagonistas. Uma das causas para o nosso atraso educativo está precisamente relacionado com o pouco poder que os actores e as comunidades detêm na condução dos seus destinos.
Neste sentido, sou claramente favorável a uma contratualização que, não sendo sinónimo de desresponsabilização do Estado, sirva para tornar claro qual a responsabilidade da administração central e regional em relação a um determinado projecto de desenvolvimento educativo, tornando as relações mais transparentes.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

José Matias Alves
Professor
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
José Matias Alves
Professor
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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