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A Paixão segundo... Josué

Com o aproximar da Páscoa, a tensão recrudesce, sucedendo-se os actos de guerrilha, rotulados de terrorismo pela potência ocupante. Um tal Josué da Galileia, chefe político e religioso de formação essênia, aproveitando o grande fluxo de visitantes, lidera um comando num raid temerário e ocupa, durante alguns instantes, o átrio do Grande Templo! Instantes suficientes, contudo, para repudiar o mercantilismo aí dominante e proclamar publicamente, no centro nevrálgico do país, os ideais de libertação.
E por entre a confusão resultante, a escassa dezena de nacionalistas nazarenos (com ligações conhecidas aos extremistas zelotas), logrará escapulir-se, enquanto os legionários, apanhados de surpresa, encontrarão inesperadas dificuldades para progredir por entre a densa e pouco colaborante multidão.
Mas o êxito irá ser de curta duração. Durante a tarde, uma decúria escoltará até às prisões imperiais Judas bar Abbas, filho dilecto de Josué e seu delfim no desígnio nacionalista, capturado após emboscada frustada a uma patrulha romana, em Séforis, na Galileia.
O significado desta detenção abate-se sobre Josué; aquele que alguns dos seus homens veem já como um novo Messias. O desalento perpassa o grupo. Uma expressão tensa, pétrea dir-se-ia, envolve o rosto do líder rebelde. Contudo, gradualmente, uma firme determinação vai aí tomando forma.
Nessa noite entrarão novamente em Jerusalém para uma reunião clandestina em casa de um seu apoiante, curiosamente, um proeminente membro do Sinédrio! Aí, o líder, após concisa revisão dos factos, irá transmitir a sua difícil mas inabalável decisão: entregar-se-á em troca do filho!
Um coro de protestos acolhe tal revelação!!
Contudo, com um gesto ríspido, o mestre rapidamente impõe silêncio. O Sinédrio não recusará, explica. Eles querem-no a si. Querem calar a sua voz intransigente, tão pouco conforme a letra da lei de Fariseus e Saduceus. Só eles, (por um preço conveniente), podem conseguir a libertação de Bar Abbas cuja verdadeira importância Pilatos, felizmente, ainda não conhece!
Será o fim imediato do Movimento, mas poderá permitir a preservação da esperança. Bar Abas será a garantia de futuro!
Está decidido: um dos seus irá negociar com o Sinédrio. Para isso, no breve jantar que se segue, escolhe então um dos de maior confiança; Judas, conhecido como "Iscariotes" ou "Sicário" (pela "sica" que nunca o abandona), um antigo militante zelota (à semelhança do seu companheiro Simão), puro e duro e que, caso raro, sabe até ler e contar.
Escolhe-o, simplesmente entregando-lhe um pedaço de pão. Para, seguidamente, lhe ordenar numa voz que, a todo o custo, tenta mostrar impassível: vai e faz o que tens a fazer!
E Judas parte para a sua missão!
Negoceia com o sumosacerdote Caifás a libertação de Bar Abbas. Este, contudo, está relutante; sabe que a sua margem de manobra face à autoridade ocupante é limitada. Judas insiste, uma bolsa de moedas muda disfarçadamente de mão.
Finalmente o contrato é estabelecido. Os guardas do templo são enviados para o Monte das Oliveiras onde o grupo se refugiou. Conforme combinado, Josué é detido. É, naturalmente, um momento tenso,.... emotivo. Pedro, o impulsivo lugar-tenente, não se contém e agride até um dos guardas, mas é rapidamente repreendido pelo chefe que, inclusive, tem ainda oportunidade para aplicar os famosos conhecimentos terapêuticos essênios, tratando a ferida, felizmente superficial.
Os ânimos acabam por amainar. Finalmente Josué é posto a ferros e levado até ao Sinédrio. É interrogado conforme a lei e, naturalmente, condenado. O sacrifício parece seguir os seus trâmites previstos.
Mas eis que inesperadamente (sem se fazer anunciar) irrompe na sala Flávio Tibúrcio, adjunto de Pilatos, acompanhado de uma corte e exigindo a entrega do prisioneiro na sua qualidade de criminoso político. De alguma forma os romanos tinham sido alertados e vinham agora deitar a mão ao inimigo Asmoneu tão encarniçadamente procurado.
O Sinédrio fica de mãos atadas. A sua competência delegada abrange apenas os crimes religiosos. Não tem força nem argumentos para protestar. Resta-lhe apenas, agora, aproveitar a permissividade pascal (conforme combinado) e exigir a libertação de Bar Abbas.
E é assim que, Josué "O Nazareno", irá ser levado à presença do Governador Romano da Judeia. Este começa por exigir a sua confissão (como condição de uma morte rápida) pelo que se iniciam as inevitáveis supliciações. O rabi, contudo, mantêm-se em silêncio. Entre outras coisas, sabe que nenhum poder humano o pode agora salvar! Não irá dar a Pilatos o prazer de o ver suplicar!
Furioso, este esbofeteia-o! E, enquanto pede uma bacia para levar as mãos ensanguentadas da agressão, transmite ao oficial de serviço a ordem seca e peremptória da execução: crucifiquem-no!
Deste modo, Josué o Galileu, profeta e líder político asmoneu, virá a ser executado da forma apenas reservada a homicidas e criminosos políticos. A seu lado dois criminosos de delito comum. Acima da sua cabeça o motivo explícito da condenação: I.N.R.I, Jesus (versão grega do aramaico Josué), Nazareno, Rei dos Judeus.
Apenas a alguns familiares e amigos (nessa altura em Jerusalém para a celebração da Páscoa), será permitido assistir de perto à execução. Mulheres, essencialmente, entre elas Maria, sua devotada mãe e, Maria Madalena, sua dilecta esposa. Dos seus homens, apenas João, o mais novo e menos conhecido das autoridades, arrisca estar presente.
Mas nem tudo se há-de perder. Trinta e três anos depois, um grupo de zelotas desencadeará aquela que ficará conhecida como a Grande Revolta Judaica, que durante meia dúzia de anos há-de corresponder ao último estertor de independência durante quase dois milénios! Antes de se afundar, num mar de sangue, em Massada! Pouco mais tarde, comunidades da diáspora, hão-de espiritualizar a memória do rabi Josué e transformar o sacrifício de um dos últimos Messias judaicos em missão redentora da humanidade. Após o necessário branqueamento do papel de Roma (função que caberá especialmente a Paulo de Tarso), e a inevitável universalização doutrinária, transformá-lo-ão em Cristo (o ungido) cujos seguidores, três séculos depois, hão-de finalmente dominar a "grande besta" e, através dela, grande parte do mundo!

Aurélio Lopes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

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