O meu pai gostava muito de açorda. Eu não e na casa dos meus pais, quando eu era pequeno, era prato pouco habitual, apesar do gosto do meu pai. Pão ensopado, um fio de azeite, um ovo. Associa-se a açorda ao Alentejo e a um certo pão que só se encontrará no Alentejo, mas há outras açordas também portuguesas, como se verá no final desta receita. Quando era miúdo ia de comboio para o Algarve, com os meus pais, mas nunca parava do Alentejo. Salvo nas estações do Caminho de Ferro. Lembro uma, Funcheira, pela estranheza do nome. A primeira vez que fui ao Alentejo foi em 1972. Fui a Évora. Representar o Woyzeck num festival de teatro organizado pela Sociedade Operária Joaquim António de Aguiar. Eu era o Woyzeck. Voltei lá mais tarde, em 1976, integrado numa nova digressão do Teatro dos Estudantes. Percorremos o Alentejo da Reforma Agrária. Lembro-me de ter estado num monte alentejano, numa herdada transformada em Unidade Colectiva de Produção (UCP), em cuja casa-mãe flamejava (que verbo!) a bandeira do Partido Comunista. No grupo - constituído por estudantes comunistas e estudantes não comunistas - tal manifestação político-partidária causou alguma polémica. Mesmo em 1976. Lembro também que numa das noites que ali passamos (terá sido em Montargil?), a direcção da UCP ofereceu-nos um jantar, dito oficial. Desse jantar recordo o exagero dos pratos de carne que foram servidos - pelo menos três, entre os quais o ensopado de borrego - e principalmente uma passagem do discurso proferido pelo responsável da UCP. Disse ele, nesse discurso, que a direcção da cooperativa tinha consciência do exagero que era, em matéria de dieta alimentar, servir três pratos de carne a uma refeição, mas evocava os anos de fome que a generalidade dos trabalhadores alentejanos tinham sofrido como atenuante do banquete. Afinal, durante anos e anos, o sonho da festa fora o de uma dieta que incluísse um niquinho de carne. Ainda hoje me comovo ao recordar este testemunho, que foi para mim uma lição e que agora serve para dar corpo a um exercício marcado pelo escritor Mário Cláudio no âmbito de um atelier de escrita que ele está a orientar em Serralves - escrever uma receita com uma linguagem dita literária. A receita é a da Açorda de Feijão Vermelho, que eu nunca provei.
Vamos então à Açorda de Feijão Vermelho com ovo cozido
INGREDIENTES 1 molho de coentros 2 a 4 dentes de alho 1 colher (sopa) bem cheia de sal grosso 4 colheres (sopa) de azeite 1,5 litro de água a ferver 400 g de pão caseiro (de trigo escuro, já duro) 2 ovos e o feijão vermelho que sobrou da véspera
CONFECÇÃO Coentros e dentes de alho reduzem-se a papa, com o sal. Rega-se a azeite e escalda-se com água a ferver. Mexe-se e prova-se com uma fatia de pão grande. Depois junta-se o pão que resta, o feijão vermelho que sobrou do guisado com chouriço da véspera e, por último, os ovos, previamente cozidos, esfarelados.
É diferente da açorda alentejana onde os ovos entram escalfados e onde, às vezes, aproveita-se uma água que serviu para cozer bacalhau. Mas sem bacalhau, como adverte a minha amiga Marta Parrado, jornalista e alentejana de Castro Verde. Esta açorda de feijão vermelho era prato usual na zona da Guarda, no tempo em que se aproveitava, com imaginação, a comida que sobrava. Terá sido "importada" do Alentejo para as Beiras pelos "ratinhos", os migrantes beirões que demandavam a Sul no tempo das ceifas.
Esta açorda tem um sabor, dizem, que sobreviverá na memória de quem, algum dia, prove iguaria assim. Uma iguaria que supera o prato que lhe dá origem ? o feijão vermelho guisado com chouriço. Tinha de ser vermelho, pois então.
* Exercício de Júlio Roldão elaborado no âmbito de um atelier de escrita orientado por Mário Cláudio entre Março e Junho de 2007
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