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Um itinerário pela escola não formal do Museu de Arte Contemporânea do Porto seguido da receita da açorda de feijão vermelho

O exercício proposto desafiava os participantes a escrever um texto ao estilo das tragédias gregas, com coro e tudo. Um trabalho para elaborar a partir de uma história de polícia que os jornais ainda serviam (e servem) quente? Esta prática de ficcionar um tema que está na ordem do dia é pouco habitual entre os escritores portugueses.
Ele é uma das excepções: "Ursamaior" é uma viagem às prisões e passa, entre outras, pela história do aluno do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar que, ainda recentemente, matou a ex-namorada, alegadamente possuído por ciúmes demoníacos. Mário Cláudio reconhece que, entre nós e ao contrário da América de Truman Capote, há pouca tradição desta "metaficção" histórica, apesar de José Cardoso Pires ter escrito "A Balada da Praia dos Cães", uma não ficção, publicada em 1982, com base num crime de contornos políticos ocorrido em Portugal nos anos 60. Não sei se Cardoso Pires suportou, na sequência desta obra, os processos judiciais e as ameaças anónimas, algumas de morte, que Mário Cláudio revela ter sofrido pela publicação de "Ursamaior". Escolhido como narrador da tragédia "Pidasteia" (do nome Pidá, nome de guerra de um dos protagonistas de recentes histórias de polícia da noite violenta do Porto), limitei-me a sugerir, nessa sessão, a primeira fala da tragédia, para ser dita em voz-off ? já nasceu, é rapaz e chama-se Pidá. E neste dolce fare niente transportei-me para o tempo em que andei por Coimbra a participar em experiências como as de um "laboratório de teatro" que o encenador Fernando Gusmão e o escritor José Cardoso Pires dinamizaram no Teatro dos Estudantes. O "laboratório" aconteceu nos idos de
1973, a
"Pidasteia" está a acontecer na Casa de Serralves a do jardim onde Mafalda Ivo Cruz descobriu umas flores cor-de-rosa, sem perfume, antes de uma entrevista a Delfim Sardo («não, não há uma natureza do ser artístico»), o mesmo Delfim Sardo que no passado mês de Janeiro iniciou um curso sobre temas da História de Arte do século XX, século que viu nascer outras instâncias de imagens que superaram as dos retratistas a óleo. 


Público interessado

Bem perto de Mário Cláudio que está a orientar o atelier de escrita onde se ensaia a "Pidasteia", espaço/curso que é responsável pelo preenchimento, às quartas-feiras, da passagem do fim de tarde para o princípio da noite, na própria Casa de Serralves, uma jóia da Arte Déco. Delfim Sardo está, terça sim, terça não, na Biblioteca do Museu, a falar sobre alguns temas da História de Arte do século XX. Dirigidas a um público interessado em arte moderna e contemporânea, estas lições "propõe-se analisar, a partir de extensa documentação visual e textual os temas que, desde as primeiras vanguardas do século XX, implicaram a reformulação da pintura, a separação entre a escultura e a estatuária, a criação dos museus de arte moderna, o alargamento das práticas artísticas e a quebra dos cânones das belas artes, bem como as práticas performativas, a importância do cinema e do vídeo e a intervenção no tecido urbano". O curso está estruturado em três módulos. "O primeiro dedicado às vanguardas artísticas do modernismo. O segundo ao ciclo de eventos que vão da pintura americana da década de cinquenta ao nascimento do minimalismo e, finalmente, e o terceiro ao alargamento dos procedimentos artísticos no contexto da utopia de uma arte em sentido amplo, na qual a tónica na corporalidade, na saída do espaço expositivo e a inclusão da imagem projectada apontam muitas das linhas de desenvolvimento da arte mais recente", como se lê na apresentação. Com o escritor Mário Cláudio, "os participantes são convidados a estabelecer um relacionamento, tão individualizado quanto possível, com textos dos maiores vultos da literatura de todos os tempos e lugares, tratando do diálogo do Homem com o seu semelhante, consigo mesmo, e com o Mundo". Como que a medir forças com essas grandes referências. Na linha do atelier da escrita anterior, também dirigido por Mário Cláudio, e destinado a proporcionar um convívio com obras da colecção do Museu de Serralves, utilizadas como motor de criatividade nas letras".

Público desformatado

Por essa altura, em Março de 2007, quase dois anos depois do início da minha licença sabática como jornalista de jornais, sentia, como ainda hoje sinto, a necessidade de desformatar a minha própria escrita, moldada durante 28 anos de prisão maior, como por uma ironia não isenta de nostalgia costumo referir-me ao tempo que passei pelas Redacções. Também por isso entrei nessa aventura da escrita, em Serralves, e cheguei a confessar-me, em decassílabos com acentuação na sexta e na décima sílabas, que "Já não sou jornalista dos jornais". "Agora vivo longe das notícias // que outrora alimentavam as delícias // de tantas novidades virtuais". Lembro-me, por exemplo, de ter reconstituído, para uma edição do centenário do Jornal de Notícias (1988) uma das grandes reportagens do jornal, a reportar a noite do naufrágio das traineiras, ocorrido a 2 de Dezembro de 1947, tragédia que vitimou 152 pescadores ao largo da costa, entre a Aguda e Leixões. No relato da tragédia descreve-se, às vezes com citações de discurso directo, o drama vivido pelos pescadores, mesmo quando se refere às traineiras (julgo que duas das quatro) que se afundaram sem sobreviventes que pudessem ter testemunhado o que se viveu a bordo. Jornalista mais cuidadoso terá sido o pintor Théodore Gericault, que pintou, em 1817, a Jangada do Medusa (Louvre, Paris) reconstituindo, pelo recurso de testemunhos de sobreviventes, o drama de 150 tripulantes do "Medusa", abandonados, na sequência do naufrágio do navio, numa jangada que acabou por se transformar numa "ilha flutuante" de violência e canibalismo.
Não me recordo de ver este quadro nas duas ou três visitas que já fiz ao Louvre. Visitas de um dia ou de uma manhã, demasiado curtas para um museu da dimensão do Museu do Louvre. Mas a referência que Delfim Sardo fez a esta obra, numa das sessões do curso sobre temas de História de Arte que está a orientar em Serralves, valeu por muitas visitas ao Louvre. Volto aos decassílabos clássicos, aos versos de dez sílabas com acentuação na segunda, sexta e décima sílabas, e reproduzo o que me saiu quando, desafiado a escrever um único desses versos, hipotequei a vontade de transformar o primeiro atelier de escrita que frequentei num processo de desformatação necessário a quem esteve 28 anos preso na Redacção de um jornal diário que foi, muitas vezes, a última manifestação do neo-realismo português. "Serralves já não é só um museu". Como só podemos repudiar o que temos, multipliquei aquele decassílabo catorze vezes e vi nascer um soneto
(sem ligas de duquesas, entenda-se). Não há nada mais canónico, nada mais ortodoxo nem, em consequência, nada de mais impróprio para quem dizia querer desformatar-se e fazer uma barrela a todos os narizes de cera e a todas as pirâmides invertidas que condicionaram muitas das minhas prosas anquilosadas que me contentaram. Serralves já não é só um museu // Nem coisa que pareça como tal // É nova e verdadeira catedral // E sítio onde Deus se converteu // // Serralves já não é só um museu // Não há museu igual em Portugal // Museu assim tão fora do normal // Jamais algum mortal o concebeu // // Aqui me arrepiei com Paula Rego // E pude exorcizar muito do medo // Que herdamos de um passado anquilosante // // Aqui neste lugar muito em segredo // Na Casa, no Museu, no arvoredo // Renasço-me de novo a cada instante. //

As palavras do futuro

Sempre fugi, a sete pés, desta poesia, conformada nas respirações longas e simétricas dos sonetos. O que procuro, nas escolas de Serralves e nos jornais e livros que registam experiências novas é a poesia dos poetas que estão mais próximos do meu arfar e que conseguem hoje as palavras que só daqui a uns anos iremos decifrar e reconhecer. Mas nem só de poesia e arte vive esta Escola de Serralves, frequentada por médicos, juízes, advogados, economistas, bancários, professores, técnicos oficiais de contas, arquitectos, jornalistas, donas de casa, estudantes, desempregados, engenheiros, farmacêuticos, guionistas, fotógrafos. Para dar um exemplo da diversidade oferecida pela Fundação de Serralves, registo o início, no próximo dia 14 de Fevereiro, de um debate sobre o Estado do País tentando descobrir a cartografia do futuro. Jorge Sampaio, Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, Vasco Graça Moura, Eurodeputado, Adriano Moreira, Presidente da Academia das Ciências Rui Moreira, Presidente da Associação Comercial do Porto, Artur Santos Silva, Presidente do Conselho de Administração do BPI António Mexia, Presidente do Conselho de Administração da EDP, José Miguel Júdice. Advogado, José Gomes Canotilho, Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Nuno Severiano Teixeira, Ministro da Defesa, Paulo Portas, Presidente do Partido Popular, Maria de Lourdes Rodrigues, Ministra da Educação, Eduardo Marçal Grilo, Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, Mariano Gago, Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Sobrinho Simões, Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Guilherme de Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura, Manuela Melo, Deputada, Eduardo Lourenço, Filósofo e José Gil, Filósofo, são os prelectores deste ciclo.
É que nem só da acção do Serviço Educativo (muito virado para a escolas) reza esta actividade formativa da Fundação e do Museu de Serralves, uma Universidade de novo tipo que atrai alunos e amigos a Serralves. O estatuto de aluno é um estatuto eterno para quem gosta de ler, gosta de arte, gosta de frequentar museus, goste de debates de ideias. O estatuto de amigo é uma posição que se adquire mediante pagamento e que confere aos respectivos titulares o acesso gratuito às exposições e ao Parque, bem como de descontos na Loja do Museu, além de outras regalias. Uns e outros verdadeiros amantes de Serralves, título que me soa melhor para este amor livre pela cultura e pelo saber que se esconde e descobre na casa, no museu e no arvoredo de Serralves. www.serralves.com

Júlio Roldão


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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