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Por uma pedagogia das ausências: diferentes lógicas no ensinar e no aprender

Pensar nos processos de escolarização das crianças das classes populares pode adquirir múltiplas abordagens, dependendo de nossas inserções e modos de compreender. Minha trajetória de educadora, alfabetizadora, pesquisadora dos processos através dos quais se pense espaços onde as possibilidades se façam, ainda que num contexto marcado pelas inúmeras dificuldades, algumas delas tomadas como inexoráveis no campo da educação, vem sendo marcada pelo estudo das diferentes lógicas que coexistem na cultura e que são sistematicamente negadas, em favor de uma lógica hegemónica que, no dizer de Benjamin (1994) "não tem cessado de vencer".
E vencer, neste caso, significa impor-se historicamente sobre a multiplicidade inesgotável do real, empobrecendo as possibilidades do mundo. Ao abordar a questão das relações que ocorrem nos contextos escolares, buscamos lugares de pensamento que tanto produzam a crítica aos modos excludentes com que a cultura do Ocidente efetivase, quanto alternativas a esses processos, através da orientação para o que pode ser compreendido se mudarmos nossos modos de ver. Assim, empreendemos um diálogo com Boaventura de Sousa Santos (2003), na busca de pontos de ligação entre seu trabalho e uma possível pedagogia das ausências, tentando compreender lógicas e saberes legítimos onde o discurso hegemónico nos orienta a ver ignorâncias, primitivismos, inferioridades, particularismos e improdutividade.
Partimos de uma compreensão de base: vivemos num mundo que está a fazer-se, numa complexidade e diversidade inesgotáveis, mas que vem sendo construído historicamente sob uma determinada ótica organizadora, possível de ser reconhecida e compreendida em seus movimentos e intencionalidade. Uma ótica que tem como principal característica a pretensão e o permanente trabalho de tornar-se única e universal: trata-se do modo da racionalidade ocidental. Essa ótica veio se hegemonizando no decurso dos últimos séculos e afirma-se através da estratégia da produção permanente de apagamentos e invisibilidade das formas diferentes de sua própria racionalidade.
O ocidente empreendeu, ao longo dos séculos, um programa de narrar a si próprio como forma superior de ser, tendo suas formas sido impostas como as melhores formas, nas muitas ações colonizadoras que empreendeu: ocupação dos territórios, expropriação das culturas e das riquezas, genocídios e epistemicídios. Mais ainda, a grande ação eficaz do ocidente, que o distinguiria de outras hegemonias historicamente conhecidas seria a capacidade que teve de relacionar as formas alternativas a si mesmo, formando sistemas totalizantes onde todas as manifestações humanas e culturais e até mesmo a natureza encontrassem significado e sentido em relação à forma ocidental. Seja em relações de oposição, seja pela criação de sistemas evolutivos onde as formas ocidentais são colocadas como ponto de chegada de processos de desenvolvimento necessários, o ocidente narra a si mesmo como ulterior, verdade única e universal. No mesmo processo, narra todas as demais formas de ser, ou como incompletas, ou como negação. Nos dois casos, a falta encontraria completude ao tornar-se a racionalidade ocidental. Essa colonização dos significados das outras formas de ser implica num efeito, produzido cotidianamente nas práticas e instituições, de invisibilização das alternativas, construída no processo de produção das não-existências. Santos aponta em seu trabalho cinco lógicas através das quais o ocidente constrói sua presença absoluta a partir da produção da não-existência das outras formas: a lógica do único saber a ciência, a lógica da única temporalidade a linear, a lógica da única cultura a européia, a lógica da única escala a global, e a lógica do único modo de produção o capitalismo.
Devemos aproximar a compreensão de Santos ao nosso próprio campo de estudos e problemas: a escolarização, especificamente os processos educativos que se destinam a cumprir, na sociedade ocidental, o ideal republicano da educação para todos. A escola, configura-se como potente instrumento de reprodução da lógica ocidental, produzindo diferentes tipos de ausências, que tomam forma nas exclusões das classes populares e de outras culturas do lugar que em teoria ela deveria promover. Se pudermos utilizar a construção de Santos, conseguiremos pensar de forma crítica a escola e suas relações de produção de uma racionalidade, e poderemos avançar na direção da construção de uma pedagogia que se detenha na observação das possibilidades do presente, potencializando-as e reconhecendo-as como legítimas alternativas ? uma pedagogia das ausências. A ausência, neste sentido aqui tomada, opõe-se à não-existência, na medida em que trata-se do reconhecimento do que foi produzido como negação, numa ação de tornar visível e pensar em formas de construir sua emergência enquanto alternativas. O empobrecimento da realidade que nas escolas toma forma cotidianamente precisa ser enfrentado, e nesse lugar de luta, reconhecer as diferentes lógicas como legítimas formas de estar neste mundo aqui é transformá-lo no campo de possibilidades que desejamos e necessitamos, um mundo em que caibam como presenças o que hoje narramos como ausências: crianças, jovens, suas histórias, suas culturas e suas legítimas formas de ser.

Marisol Barenco

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. - (Obras escolhidas ; v.1)
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências  e uma sociologia das emergências. Em: Santos, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: "Um discurso sobre as ciências" revisitado. Porto: Afrontamento, 2003.

  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Marisol Barenco
GRUPALFA e Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Marisol Barenco
GRUPALFA e Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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