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O campeão e o contexto donde nasce

O mundo actual conferiu prestígios novos ao desporto (como afinal ao erotismo, o que pressupõe, como dado a considerar, uma inovadora concepção do corpo) mas, espelhando o clima de radicalidade que a distingue, vestiu-o de antagónicas concepções doutrinárias. Para uns, o campeão, o atletamodelo, surge à guisa de complemento necessário da democratização do desporto e, por extensão, da democratização da sociedade. Numa sociedade, onde todos podem desenvolver as suas potencialidades, o campeão do desporto nasce ao mesmo tempo que o grande escritor, ou o cientista exímio, ou o artista admirável. O campeão desportivo é assim o fruto da justiça social.
Para outros, o campeão, o atleta-cartaz, é o resultado do treino intensivo e sistematicamente de um praticante superdotado, o qual, tecnicamente estimulado, brota à margem do estado geral do desenvolvimento do seu país.
Nestas circunstâncias, encontramos, no segundo ponto de vista, alguns erros que passo a condensar, nas alíneas seguintes:
1. Cada país possui o seu conceito de prática do desporto, de acordo com o seu estado de desenvolvimento. O campeão, que desponta à margem do progresso tecnocientífico e do desenvolvimento socioeconómico de um povo, é o resultado de uma sociedade subdesenvolvida, ou seja, classista e hierárquica, onde só os privilegiados se aperfeiçoam e aos mais dotados são dispensados favores especiais. Sociedade portanto agressiva, porque limitativa dos direitos inalienáveis da pessoa humana; sociedade mágico-animista, porque sublima a desigualdade social, com a criação de super-homens e semi-deuses (se há superhomens, há super-direitos; se há semi-deuses, há seres poderosos a cultuar e a incensar).
2. Com uma descrição e avaliação do mundo, típica de estruturas arcaicas, o desporto, como actividade promotora de valores humanizantes, ou como conhecimento-emancipação, não é sentido como necessidade primária das populações.
3. Em países fortemente classistas e por isso onde a educação e a saúde não são efectivamente democratizadas, o apoio político e administrativo (autoritário e burocrático), os interesses capitalistas e neoliberais esgotam-se nas atenções e subsídios concedidos ao espectáculo desportivo, ou melhor, à rivalidade interclubista, que empurra os "torcedores" a exigirem que o supérfluo seja indispensável. Quando se transforma um jogo de futebol, em artigo de primeira necessidade, estimula-se uma lógica consumista que mantém o sistema injusto em funcionamento. Norbert Elias adianta uma tese, na obra que escreveu com Eric Dunning, intitulada Deporte y Ocio en el proceso de la civilización (Fondo de Cultura Económica), segundo a qual o desporto representaria a "busca da excitação" numa sociedade em que o controlo das emoções é cada vez mais necessário. Não duvido! Mas não tenhamos receio de acrescentar que a matriz do progresso do desporto, como fenómeno livre e libertador, é a democracia política, económica, social, cultural e o aprofundamento da democracia representativa. Todas as demais explicações são epidérmicas. O brasileiro Leonardo Santiago, actualmente com 22 anos de idade e que ingressou no Feyenoord da Holanda, com 11 anos de idade, é sintomático: Futebol é business e a gente é o produto". E, ao ingressar no Feyenoord com 11 anos de idade, ele foi de certo sujeito a especialização precoce. Será que também os grandes "craques" são homens que nunca foram meninos? Os campeões serão os "tumores malignos" de uma sociedade, se as regalias que lhes são concedidas contrastar com a miséria e a exclusão dos seus concidadãos. A missão imperial, globalizante do economicismo neoliberal encontra, neles, os seus aliados ideais. Não, não entendo o desporto como coisa vulgar; sinto-me bem longe do angelismo da cultura ocidental ? mas antes dos campeões em que eu acredito há muita coisa a fazer, nas esferas do social e do político.

Manuel Sérgio


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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