A "gíria" vive do contexto - subsiste ou evolui de acordo com os caprichos de uma realidade movediça. O cenário educativo, todavia, é a este título estranhamente conservador. Analise-se, a título de exemplo, a estranha sobrevivência de três chavões do quotidiano escolar: "Furo"; "Palha"; "Cábula". "Furo": Designa uma fractura na mancha horária. Quando se reconhece um "furo" como algo que, prejudicando os visados, se refere sempre à totalidade que fragmenta (o horário lectivo propriamente dito), deparamo-nos imediatamente com o que se dá como importante, o espaço aula, e menos importante o "extra-aula". Nesta leitura, tudo o que se passa no exterior do espaço tradicional da aula ? todo o não disciplinar ? é submetido ao que mede realmente o tempo útil da escola, sendo claramente o tempo lectivo o fiel da sua balança. Tudo o resto é paisagem, isto é, tudo o mais são furos! "Palha". Deprecia o professor, obviamente. Quando o aluno afirma ter posto "palha", quando diz que o professor "quer é «palha»", mormente em situações de avaliação, não só associa abusivamente o professor à estirpe dos herbívoros ruminantes como lança uma avaliação prévia à sua própria resposta. Duas hipóteses interpretativas: a "palha" é realmente insalubre, não tendo substância que a eleve aos elementos saboreáveis do saber; ela representa, por outro lado, reflexão pessoal sobre os conteúdos em causa, dotando uma resposta de um tom singular e imprimindo-lhe uma dimensão pessoal. O sentido do termo indicia um aluno que descrimina o saber válido (os conteúdos) do saber inválido (o que ele tem a dizer). Lê-se, no uso indiferenciado do termo, a convicção de que a apropriação dos saberes por parte do aluno é idealmente impessoal. "Cábula". Curiosa é a sua dupla condição: designa um aluno pouco aplicado; nomeia um instrumento de cópia, consultada clandestinamente durante uma prova. Ambas partilham uma dimensão depreciativa de incumprimento ou de fraude. Hoje, quando os recursos tecno-mediáticos implicam a escola na aquisição, por parte dos discentes, de hábitos de pesquisa, do recurso não-fraudulento a bases de dados planetárias e ao critério para seleccionar informação, a vigência da palavra "cábula" é duplamente grave, pois denuncia a tentação de reprodução quando ela é tanto mais facilitada quanto menos desejável. É que a "cábula" substitui-se apenas à memória e à memorização, magras medidas para uma educação de futuro. Em suma, o modo como vivenciamos a realidade educativa, na sua complexidade, encontra um reflexo indissolúvel no modo como dizemos a educação. Daí que se pergunte: Serão estas (e outras) palavras o indício de uma "ordem" perpetuada? Será ainda possível reconsiderar esta ordem? De que forma os sucessivos assaltos reformistas cimentam a repetição destas fórmulas? E a que preço? Sintetizo, num chavão revelador: «- Podemos trocar a ordem das perguntas?»
Hugo Monteiro
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