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O futuro ex-novo regime de autonomia, administração e gestão das escolas - algumas notas soltas

No dia 20 de Dezembro p.p. foi aprovado, em conselho de ministros, um projecto de dec.-lei intitulado "Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário". Trata-se de um documento que se desenvolve ao longo de cerca de 40 páginas e 69 artigos, distribuídos por IX Capítulos, com extensão muito desigual (o mais curto com 2 artigos e o mais longo com 29). Pela data da aprovação (em época natalícia) poderíamos ser levados a pensar que o governo, finalmente, decidiu brindar os professores com uma "prendinha no sapato". Afinal, parece que ainda não foi desta.
O referido projecto de dec.-lei, agora em "consulta pública", surge justificado invocando três metas/objectivos fundamentais: i) "reforçar a participação das famílias e das comunidades na direcção estratégica dos estabelecimentos de ensino"; ii) favorecer o desenvolvimento de "boas lideranças e lideranças fortes" e; iii) reforçar a autonomia das escolas (preâmbulo). Na página do Ministério da Educação o referido projecto de dec.-lei surge anunciado como "Novo regime de autonomia, administração e gestão das escolas". Quisemos então perceber o que trazia de novo o "novo regime" agora proposto. Uma primeira leitura do documento sugere estarmos perante "vinho velho em odres novos". Contudo, uma leitura mais atenta permite afinal uma outra conclusão: em partes significativas do texto trata-se antes de "vinho velho em odres podres!" De facto, o documento em análise tem pouco de interessante e de original e, parafraseando um conhecido juízo avaliativo, pode-se afirmar, com toda a propriedade, que no que é interessante não é original e no que é original não é interessante.
Vejamos alguns exemplos.[1] No documento em apreço propõe-se um "novo" órgão colegial de direcção agora designado "Conselho Geral". A sua composição e competências não apresentam, num primeiro nível de análise, diferenças significativas em relação à "velha" assembleia instituída pelo dec.-lei 115-A/98. Há, contudo, alguns "pequenos" pormenores. Se os corpos sociais aí representados são os mesmos, o seu peso relativo é agora diferente. Por exemplo, o número de representantes dos professores não pode ser superior a "40% da totalidade dos membros do Conselho Geral" (ponto 2 do art.º 12º). O que antes era uma possibilidade (dependente da própria escola) torna-se agora uma imposição externa. Mais surpreendente: pelo menos 25% dos candidatos à representação dos docentes têm que ser "professores titulares". Este requisito faz o mesmo sentido que exigir que pelo menos 25% dos candidatos a representar os pais estejam filiados no partido do governo, ou que pelo menos 25% dos candidatos a representar os alunos tenham olhos azuis, ou ainda que pelo menos 25% dos candidatos à representação dos funcionários sejam destros. Mais notável ainda: o presidente do Conselho Geral não pode ser um professor (ponto 1, art.º 13º, alínea a)! Até se poderia compreender que o presidente do Conselho Geral não tivesse que ser um professor, contudo, impor que o não possa ser envolve uma discriminação (negativa) cujos insondáveis motivos escapam ao comum dos mortais.
Outra "novidade": nas competências do Conselho Geral inclui-se agora "seleccionar e eleger o director" (ponto 1, art.º 13º, alínea b). Trata-se, na verdade, de duas aparentes "novidades": este órgão de "administração e gestão" será obrigatoriamente unipessoal e será designado através de um processo "minotaurico" que envolve um misto de concurso e de eleição.[2] A "novidade" é, contudo, ilusória pois, quer o processo de designação quer a natureza unipessoal do órgão constituem uma ressurreição de uma "solução" que se julgava morta e enterrada após o "arquivamento" do insucedido dec.-lei 172/91. Causa alguma estranheza que um processo de recrutamento que já foi experimentado, e objecto de uma "avaliação externa" por parte do Conselho de Acompanhamento e Avaliação criado para o efeito, e que mereceu do referido Conselho uma apreciação negativa[3], surja agora como um dos pilares para promover "boas lideranças e lideranças fortes". O mesmo pode ser dito em relação à imposição de um órgão unipessoal para as funções de "gestão administrativa, financeira e pedagógica". O Conselho de Acompanhamento e Avaliação do dec.-lei 172/91 também se pronunciou sobre este ponto, não tendo encontrado evidência empírica que fundamentasse a bondade da unipessoalidade da "gestão operacional", avançando, congruentemente, os dois cenários: órgão unipessoal ou órgão colegial.
No enquadramento normativo actual (dec.-lei nº 115-A/98) existe a possibilidade de opção por um órgão unipessoal para o exercício daquelas funções, cabendo à escola a competência de decidir sobre o assunto. É do conhecimento geral que as escolas optaram esmagadoramente por um órgão colegial. Na proposta aqui em apreciação, os proponentes não têm dúvidas: o órgão de gestão tem de ser unipessoal. Pena é que não tenham partilhado connosco a fundamentação teórico-empírica das suas certezas.
O documento em "consulta pública" apresenta ainda outra "originalidade", uma estreia absoluta no pós 25 de Abril de 1974: podem candidatar-se ao cargo "director" docentes do ensino particular e cooperativo com experiência de gestão nos respectivos estabelecimentos de ensino. Contudo, a originalidade maior resulta da combinação do estipulado nos pontos 3 e 4 (e respectivas alíneas) do art.º 21º: um director pedagógico, ainda que sem formação específica, de um qualquer colégio particular falido pode ser oponente ao concurso. Em contrapartida, um professor de uma escola pública, com vários anos de exercício da docência, com formação especializada em administração educacional, com eventual experiência de gestão, estará excluído do concurso se não pertencer "aos quadro de nomeação definitiva", requisito que, obviamente, não é exigido ao director do colégio particular. Em síntese, para se ser director de uma escola pública não é preciso ser competente e ser competente não basta!
Apesar da usurpação de algumas das competências antes atribuídas às escolas, e de não se vislumbrar nenhuma competência verdadeiramente nova devolvida às escolas, os proponentes desta proposta ainda nos querem convencer que um dos objectivos da mesma é "o reforço da autonomia da escola"! É certo que o termo está abundantemente semeado pelo texto (contabilizamos cerca de meia centena de referências ao mesmo). Contudo, a construção retórica da realidade tem as suas limitações.

[1] Esclarecemos desde já que, como se refere no título desta reflexão se trata de alguma 'notas soltas'. Uma análise circunstanciada do documento é absolutamente incompatível com as condicionantes do contexto em que a mesma é apresentada.

[2] Deixámos para outro momento a análise dos requisitos à candidatura ao concurso e das competências do director.

[3] Cf. p. 52 do Relatório de Avaliação do regime de direcção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (Decreto-Lei nº 172/91, de 10 de Maio). Conselho de Acompanhamento e Avaliação/Ministério da Educação, Março de 1996.

Virgínio Isidro Martins de Sá


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Virgínio Isidro Martins de Sá
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho
Virgínio Isidro Martins de Sá
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

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