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Na curva do tempo

Já todos temos nome antes mesmo que tenhamos visto a luz do dia, e não é sequer uma questão de género, de fé, de esperança numa qualquer data que nos venha a acompanhar pela vida, inscrita nas comemorações, nos documentos que nos fazem cidadãos, no horóscopo que toma à credulidade a vez das certezas, das probabilidades que arrancam das matemáticas a objectividade e restituem ao acaso o seu sentido mascarado de liberdade.
As tempestades fazem-se anunciar, chove antes que tenham sido encharcados os campos, os ventos sopram sem que as nuvens se movam, e não recolhemos mais cedo ao sono pelo facto de que uma geringonça de luxo nos quebrará a noite na hora precisa para que for preparada. Os gestos banais relegam as agendas para a gaveta de um relógio de cuco que nos vai cantando que fazer, quando e onde, temos bolas de cristal para a contabilidade do dia-a-dia, as novidades não chegam para agitar a ansiedade dos namoros ao compasso de promessas formatadas a gosto, e moramos no local errante em que tudo nos cai do céu como alienígenas no berço de miríades de gémeos. Esses gestos à distância, que poupam a distâncias e os tempos sem comiseração pelo destino que se consulta como quando pedimos o conselho a um monte de lata, arquitectado com a arte da inteligência e modelado com a intuição engenhosa de quem não tem mão sobre a própria obra. A magia que nos completava como crianças, essa viagem que se desenhava com o olhar sobre o futuro que durou pouco, a ousadia das promessas na invenção de uma realidade em que houve lugar para os fascínios, o mundo que tínhamos pelo freio dos exageros, o faz-de-conta que durou o ínfimo segundo de uma geração, tudo se consuma agora como no dia que cada um viveu à sua maneira o momento da perda da inocência. Há pouco que nos preencha o quotidiano com a incredulidade, nem que seja com um pouquinho muito pouco de espanto, desde que habituámos a abrir as notícias com a indiferença pelo que apenas prova que afinal não é novidade, que já era visto antes de acontecer, que as histórias são verdadeiras mesmo que não haja prova delas. O boato nas bocas excitadas das meninas, as premonições envoltas em mistérios, o eco das nossas vozes distinto e pessoal, os segredos de todos os estrategas são património que se degrada enquanto dá duas voltas ao mundo sem que o mundo tenha tempo para dar a sua volta cósmica. E o mais são dúvidas acerca do que pertence a quem e sobre se falta muito, pouco ou nada para provar o boato, a premonição, o som da nossa voz, a jogada do parceiro à mesa vulgar sobre que se assinam compromissos desactualizados.
Alguém cruza uma praça no bulício matinal enevoado e frio, em demanda de um sítio indefinido que os mapas não decifram e a consciência tem vendado, o passo feito com a força enigmática que ultrapassa obstáculos maiores que a condição erecta, perseguindo o horizonte para nele repousar um simples tributo aos deuses. Sob o braço vão os números que, com a cadência pontual do caminho, põem ordem no tráfego inevitável de um dia anunciado, o genoma, a cadeia de que os deuses talvez possam libertar fazendo-a sua e eterna propriedade. E se vier então um raio de luz que seja para dissipar o nevoeiro, aquecer as nossas faces ruborescidas por um sentimento de ignorância e uma sensação de crença no devir, e nos permitir a vista sobre a própria obra toda ela incompleta, sintamo-nos humanos até à medula no nosso poder e na nossa fragilidade. À imagem de uma natureza que se reconstrói, regenera e perpetua no esplendor e na essência. Falíveis, falíveis e prematuros até no próprio nome para que seja um outro a dá-lo, um nome comum e perpétuo.
Se houver desígnios que seja um deles o de não sermos atingidos pelo nosso ancestral bumerangue, alvos da nossa inventiva de predadores cegos enquanto o perdemos de vista. Tomemos-lhe o pulso, atenta a trajectória pelos ideais e a arte do manejo, sem correr riscos de que na voracidade pela nossa sobrevivência possamos ser empurrados para a frente, neste cenário em que vai havendo cada vez menos lugar para o improviso e a beleza na concretização da ingenuidade que tenha sobrevivido dos primórdios. Sempre na curva do tempo, na curva da estrada em que ele é omnipresente com ou sem peregrinos.

Luís Miguel Brandão Vendeirinho


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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