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Pioneiros da biodiversidade - os novos piratas das Caraíbas

O número de espécies que habitam o planeta é inimaginavelmente grande. Tão grande, que ainda hoje não o conhecemos com um mínimo de precisão. E se ainda somos ocasionalmente surpreendidos pela descoberta de um novo mamífero? um grupo com relativamente pouca diversidade? o que se passa quando entramos no reino dos insectos ou dos micróbios?
Conhecer a diversidade das espécies? a biodiversidade? é preciso, não para mera satisfação intelectual, mas como base fundamental para compreender e monitorizar o ambiente de que nós, humanos, dependemos. E também como fonte potencial de benefícios, ou não se tratasse de um recurso que pode ser explorado para inúmeros proveitos.
Quando pensamos em catalogar a biodiversidade, facilmente vêm à memória as expedições do século XIX, imagens de naturalistas perdidos em locais exóticos a recolher espécimens em frascos com formol. Muitas viagens do período colonial levavam a bordo o seu naturalista ? o mais famoso dos quais será certamente Darwin. Outras foram planeadas de raiz com objectivos de investigação, como a expedição inglesa do HMS Challenger que, com os postos de artilharia reconvertidos em laboratórios, circum-navegou o mundo entre 1872 e 1876, regressando com exemplares de 5000 novas espécies marinhas.
Não espantará ninguém dizer que os caçadores de biodiversidade dos nossos dias são um pouco diferentes. Diferentes nos recursos tecnológicos e métodos de trabalho ao seu dispor. Mas também, e isto já poderá surpreender, na muito menor liberdade com se movem pelo globo.
A mais fantástica expedição de descoberta de biodiversidade dos tempos modernos, inspirada na viagem do Challenger, começou em 2003 e viu os seus resultados publicados este ano. Por detrás dela, 9 milhões de dólares do governo americano e o génio controverso do pioneiro da sequenciação do genoma humano, Craig Venter. O alvo, os microorganismos do mar, um dos nossos recursos menos conhecidos e com potencial para fomentar aplicações biotecnológicas de grande impacto ao nível da remoção de carbono atmosférico ou na produção de combustíveis alternativos. O método, asséptico e à século XXI, mas com o seu quê de romântico: filtrar milhões de litros de água do mar enquanto se dá a volta ao mundo a bordo de um belo veleiro (o Sorcerer II) e depois determinar a sequência de todo o material genético retido. Os resultados, extraordinários: o percurso entre o Canada e o Pacífico Sul, gerou 6,3 mil milhões de nucleótidos de DNA, 6 milhões de novos genes, 1700 famílias de proteínas desconhecidas, sem sinal de saturação no ritmo de obtenção de resultados. Ou seja, se mais se procurasse, muito, muito mais lá estaria para ser encontrado. A diversidade de microorganismos no mar é atordoante, com algumas estimativas a apontar para que num só litro de água salgada existam pelo menos 25 000 variedades distintas. Mas a quem pertence toda esta diversidade?
A Convenção da ONU estabelece o direito das nações costeiras à descoberta e exploração dos recursos da sua zona económica exclusiva. Fora das zonas de jurisdição nacional, não há regras definidas e nos últimos tempos tem-se observado um aumento da "bioprospecção" por parte de empresas farmacêuticas e afins, com o correspondente patentear de descobertas (genes ou proteínas) com potencial valor comercial.
Ao contrário dos exploradores do passado, a expedição do Sorcerer II fez-se acompanhar por advogados que negociaram os direitos de exploração da biodiversidade, com maior ou menor resistência por parte dos governos locais. E se, neste caso, a promessa de não procurar monopólios comerciais parece estar a manter-se, a boa fé mostrada pela publicação integral dos resultados em jornais científicos e bases de dados de acesso livre, nem por isso a controvérsia tem sido menor, com acusações de biopirataria. Mas estas são expedições muito dispendiosas, apenas ao alcance de nações ou empresas de grandes recursos. Impõe-se por isso um investimento em regulamentação internacional que garanta que os benefícios chegam a todos, e não travar novas descobertas, só porque os "proprietários" legítimos não têm condições para as fazer.

Margarida Gama Carvalho


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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