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Para que a escola continue a ser escola

Imagine...
A Madalena tem 2 anos. Na aldeia, no café, está ao colo da tia e observa a mãe e a prima. Imita-lhes os gestos, repete-lhes as palavras. Interage com os adultos que lhe corrigem as palavras, para que ela lhes apure o sentido. Está a construir significados. Está a aprender, com a ajuda dos adultos.
A Margarida tem perto de 40 anos. Recorda, com duas das suas professoras de terceiro ciclo que encontrou por acaso, como, em meadas dos anos 80, num subúrbio de Lisboa, na escola, desenvolviam projectos com a turma. Cada uma das professoras integrava conteúdos da disciplina que era da sua responsabilidade. Margarida conta como se construiu a profissão de advogada.
A Joana tem 8 anos. Sai, todos os dias, da escola de outro subúrbio, às 3 da tarde, para o serviço camarário, onde uma pequena equipa a acompanha, com mais 29 crianças. Aconchegada no espaço acolhedor, com a certeza de encontrar os mesmos adultos todos os dias, enriquece, descontraída, o seu património de saberes, que traz de casa, da escola, do seu meio envolvente. No próximo ano lectivo o serviço será encerrado por falta de verbas.
A Madalena e a Joana têm poucas hipóteses de encontrar a escola que a Margarida recorda com as professoras dela. Aliás, a geração da Margarida muitas vezes também não encontrou aquela escola de interacção, integrada na vida. Eram demasiado ousadas as propostas de um currículo mal adaptado a uma sociedade sufocada pelas estruturas que o Poder tinha criado ao longo de 50 anos.
O novo Poder, virado para um modelo menos europeu, sabe que não convém dar à escola e à sociedade o tempo para se apropriar de ideias humanistas vindas dos currículos e dos programas desenvolvidos ao longo de décadas em outros estados com um modelo social europeu próprio. O gestor da Coisa Pública prefere envolver a Madalena e a Joana em unidades de formatação contínua, desde que elas tenham 3 anos até chegarem aos 15 (ou 18), 8 horas por dia. São unidades desde há muito sonhadas e descritas por grupos influentes, também na Comunidade Europeia. Quem se lembra de recomendações do European Round Table "traduzidas" no livro branco sobre a Sociedade Cognitiva?
Nas unidades de formatação para as quais se desenvolveu um estranho conceito de autonomia que as torne cada vez mais estanques, leis são transfiguradas em medidas operacionais: educadoras discutem grelhas de avaliação transformando orientações curriculares em disciplina castrense e falam cada vez menos das crianças; professores do 1º ciclo transformam o desenho curricular transversal em fatias disciplinares, resumindo hora a hora a sua actividade num livro de ponto inadequado. Interpretações feitas da gestão horária levam até à rejeição dum livro de registo mais adequado; no 2º e 3º ciclo a área de projecto continua a ser encarada como uma nova disciplina por uma instituição e um corpo docente mal preparado para um trabalho transdisciplinar; em muitos sítios, docentes que defendem a carreira única, opondo-se ao sistema de quotas para subir à categoria de professor titular, introduzem as mesmas quotas nos quadros de honra que pouco a pouco ressuscitam de tempos tenebrosos, para melhor formatação de crianças; empresas de outsourcing de actividades eufemísticamente referidas como de enriquecimento curricular, fazem com que muitas crianças não saibam se terão a próxima actividade programada, nem com quem.
Neste universo de formação "just in time" à medida das exigências de gestores de lucros e fortunas, torna-se hábito entender a democracia como mero exercício de estilo que salvaguarda a autocracia e permite somente ao mais fraco exprimir o seu acordo com o que outros decidiram para ele ou abster-se.
Neste universo, o trabalho administrativo multiplica-se na ânsia de demonstrar que o corpo docente produz. E ele produz: mais e mais normas, seguidas de mais e mais esquemas pelas quais as crianças são avaliadas na sua capacidade de seguir ordens.
O mesmo corpo docente tem cada vez menos tempo para investir na relação pedagógica de que as cidadãs Madalena, Margarida e Joana precisam para se desenvolver como pessoas pensantes e críticas e não como meros executantes.
O novo PREC (PRivatização Em Curso) onde a palavra Lei significa Lei Do Mercado, permite, obviamente, que às crianças ricas se paguem alternativas. Às pobres não. Para elas, a formação básica torna-se mais uma vez ainda mais básica. Dura lex sed lex, Simplex.
Evitemos que a escola deixe de ser escola. Invistamos nela como espaço de diálogo.

Nota:
O autor deste texto, e colaborador permanente desta rubrica, publicou na Profedições, editora deste jornal, o livro com o título: «A escola faz-se com pessoas».


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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