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"Grande mestra é a natureza se soubermos ser bons alunos..."

David Rodrigues, professor e colaborador de A Página, acaba de lançar o seu segundo livro de poesia

David Rodrigues é professor associado da Faculdade de Motricidade Humana, instituição na qual se doutorou na área de Educação Especial e Reabilitação. Ensina e investiga na área da Educação Especial, sendo coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva. O argumento para esta entrevista, porém, não é tanto a sua actividade profissional mas mais a sua veia de escritor. Com vinte livros publicados no âmbito científico, "Estações Sentidas" ? o livro que acaba de lançar pela editora Indícios de Oiro ? representa a sua segunda incursão pela literatura de ficção, com a particularidade de ser totalmente escrito obedecendo a uma ancestral forma de poesia japonesa minimalista: o Haiku. No preâmbulo de ambos os livros refere que "escolheu a arte, a música, a família, os amigos e algumas causas sociais para lhe fazerem companhia na jornada". Nesta entrevista, a Página dá a conhecer as motivações deste professor para a escrita e dá a conhecer o Haiku.

Este é já o segundo livro de poesia que publica. De onde surgiu o seu interesse por este género literário?

O meu interesse pela poesia adveio sobretudo da sua leitura. Lembro-me que desde adolescente me emocionava com a grandiloquência ou com as dores que eram relatadas em poesia. Depois li tudo o que me passava ao alcance dos olhos e, mais tarde, comecei a ser mais selectivo. Assim adquiri um conhecimento razoável tanto da poesia que se edita em Portugal como de alguns autores estrangeiros. Depois foi o grande salto de receptor para emissor.
Gostar de poesia ? até mesmo gostar de certa poesia ou de certo autor ? não nos compromete, não nos expõe; mas dar a conhecer algumas linhas que seja sobre as nossas emoções é já uma tarefa que implica uma grande exposição. Esta exposição é tanto mais difícil quanto, como é o meu caso, se tem consciência que a nossa contribuição é muito limitada. Será que vale a pena este pequeno passo gigantesco de passar de leitor de poesia a produtor de poesia?
Sempre tive um fascínio por escrever textos curtos. Tenho uma série de contos escritos e não publicados em que cada um não tem mais de três mil caracteres. Daqui à poesia é um caminho mais fácil. Talvez por a poesia ser feita de textos mais enxutos e mais densos do que se esperaria, à partida, por exemplo, de um texto em prosa. Densificar e simbolizar são, para mim, as operações que podem converter um texto em poesia, e se a isto se juntar o "engenho e arte" pode até nascer uma boa poesia.

Ambos os livros têm a particularidade de serem escritos seguindo a tradição formal do "Haiku", uma ancestral forma de poesia japonesa minimalista caracterizada por versos de três linhas. Pode explicar-nos melhor em que consiste o Haiku e a razão de ser deste interesse?

O primeiro livro "Espírito de Corpo: textos prensados", publicado em 2006, foi um livro sobretudo dedicado ao Corpo. Já neste livro publiquei vinte e sete haiku. Este segundo livro, "Estações Sentidas", é constituído por 111 destes poemas.
Porquê este interesse pelos haiku... bom, antes de mais porque os fui encontrando na obra de vários poetas. Venceslau de Morais, Casimiro de Brito, Herberto Helder, Eugénio de Andrade, Albano Martins, só para citar alguns poetas portugueses, foram seduzidos tal como eu por este tipo de poesia. Talvez porque, antes de mais, o Haiku tem o encanto do desafio: exprimir uma ideia poética em dezassete sílabas constitui uma empresa complexa de forma a encontrar as palavras exactas, necessárias e suficientes, para tornar inteligível a ideia que se quer expressar.
Um outro factor que considero muito interessante no Haiku é a sua ligação íntima à observação da natureza, uma ligação que é feita no momento presente (assumida pelo poeta como um "insight", uma intuição) encravado no curso entre o passado e o futuro. Neste aspecto o Haiku assume um papel de contra-corrente à nossa vida quotidiana por duas razões principais: antes de mais porque é uma forma sintética, subtil e precisa que surge numa sociedade que cultiva o excesso, a repetição e a exuberância; por outro lado, porque desenha uma ponte com a natureza da qual as pessoas (e sobretudo as populações urbanas), estão cada vez mais distantes. Numa época em que esta separação entre o Homem e a natureza começa a dar sinais de uma irreversibilidade dramática a temática do Haiku convida-nos a observar com reverência e respeito o que está à nossa volta. Grande mestra é a natureza se soubermos ser bons alunos...
O meu interesse pelos Haiku é pois o de visitar os valores mais simples da vida, aqueles que se podem aprender da natureza. As nossas sociedades estão tão preocupadas em produzir riqueza que por vezes se perdem na rota de saber para quê ou para quem esta riqueza serve.
Partindo da minha experiência, o Haiku parece criar dependência... É o caso de muitos amigos meus, que mal lêem esta forma de poesia ficam com uma indomável vontade de a fazer. Por isso, o Haiku é tão usado em educação, como uma forma de iniciação poética para jovens. Ainda há pouco tempo, Maria Kodama, viúva do escritor Jorge Luis Borges, organizou um livro de Haiku escrito por alunos do ensino primário e secundário.
Um último factor interessante sobre o Haiku é a enorme disseminação que tem a nível mundial: podemos encontrar em todos os países sítios, publicações, associações, grémios literários, concursos, seminários, clubes que se dedicam a esta forma poética. Talvez seja na actualidade a forma poética mais popular e disseminada. Para o constatar basta consultar a Internet.

Tendo em conta que o Haiku aparece sempre associado a uma das estações do ano ou contendo referências à natureza, este segundo livro versa algum destes temas em particular?

Gosto do termo "estação". Dá ideia que confrontados com o correr do tempo nós inventamos quatro estações (isto é, formas mais permanentes de "estar", como se fosse um "estar grande") para assistirmos ao tempo a passar e talvez criar a ilusão que o tempo corre e nós atrasamo-lo, nós "estamos". Os Haiku referem-se muito frequentemente a este correr lento mas inexorável do tempo olhando-o através das modificações que ele provoca na natureza. A palavra japonesa "kigo" designa precisamente estas marcas próprias de cada estação que não deixam de ser sempre passageiras e fortuitas face ao fluir do tempo. Esta é a concepção mais tradicional do Haiku da qual poderia dar o exemplo do famoso Haiku do grande poeta japonês, Bashô: "O velho tanque/ uma rã mergulha/barulho de água". No entanto, muitos poetas, na actualidade, usam o Haiku com conceitos menos estritos. Vejamos o exemplo de um haiku do poeta Casimiro de Brito publicado em Maio deste ano no Japão: "De canto em canto/ vou caindo/no charco do silêncio".
No meu livro "Estações Sentidas" procuro escrever sobre as quatro estações em que se divide o ano, numa temática mais ligada à natureza (ex: "Com mil olhos negros/ a oliveira olha mansa/ as aves que passam" ou "O granito áspero/ficou com pele de veludo/nasceu-lhe um trevo") e numa segunda parte escrevo com uma maior liberdade temática (ex: "A estrada onde vou/ tem flores de um lado e noite de outro/ caminho nas bermas" ou "O lago não sabe/ até que chegue o vento/ quantas ondas tem").
Deixe-me fazer uma referência ao excelente prefácio ao livro que é feito pelo meu amigo, o escritor Gonçalo M. Tavares, que, numa linguagem muito bela e precisa, explica em que consiste o Haiku e como deve ser lido.

Está a preparar mais algum trabalho no campo da poesia ou da literatura?

O mais difícil é começar, depois os projectos sucedem-se e encadeiam-se... tenho um livro de contos para crianças e um livro de contos prontos e outros projectos que esperam a prova do tempo para poderem ver a luz do dia. Acho que estas produções, tal como alguns vinhos, precisam de um período de repouso para apurar o seu valor... Depois, há uma tarefa na qual eu não sou muito fluente que é a de encontrar editores para estes trabalhos. Mas acredito que no momento certo eles aparecerão.

Para além da sua faceta de escritor, o David Rodrigues é sobretudo reconhecido pela sua actividade enquanto investigador na área do ensino especial e como coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva (FEEI). Nessa qualidade, e apesar de regularmente escrever no nosso jornal sobre este tema, qual o seu comentário acerca da reorganização da Educação Especial levada a cabo pelo actual Governo?

É verdade. A minha profissão não é poeta, é professor universitário. Isso até se vê pela publicação: publiquei vinte livros como académico e só dois como poeta... Trabalho há muitos anos na formação, intervenção e investigação em Educação Especial. É difícil fazer um balanço muito sucinto sobre a sua questão, mas vou tentar usar uma resposta inspirada na economia de palavras do "Haiku"... Penso que muitas das medidas que estão a ser tomadas são positivas e bem intencionadas (ex: a defesa da educação de todos os alunos na escola regular, a extinção de escolas especiais como lugares de escolarização, etc.). Tenho criticado, no entanto, alguns aspectos desta política (a utilização da Classificação Internacional de Funcionalidade da Organização Mundial de Saúde para construir planos de intervenção para alunos, a restrição dos serviços de apoio especializado só a alunos com uma condição de deficiência, entre outros aspectos) mas um ponto fundamental da minha crítica prende-se com a ausência de diálogo do ME com os professores e com os especialistas da área, o que não permite que as medidas que o Ministério pensa que são adequadas (umas serão, outras menos...) se exponham a qualquer tipo de contraditório. Esta atitude "iluminada" do ME tem criado resistências e descrença escusadas na bondade das medidas.

Qual é o âmbito de actuação do FEEI e que balanço faz da sua intervenção?

O Fórum de Estudos de Educação Inclusiva (FEEI) (www.fmh.utl.pt/feei) é um projecto que procura pela positiva promover as condições para o desenvolvimento de projectos inclusivos. Para isso temos um centro de documentação, organizamos formações, temos contactos internacionais, fazemos investigação (foi publicado no mês passado o livro "Percursos de Educação Inclusiva em Portugal: dez estudos de caso), e discussão de linhas programáticas. Consideramos que os nossos quase 600 membros são boas notícias da Educação Inclusiva e um património que temos que valorizar e preservar. O balanço que faço é muito positivo só poderia ser ainda mais positivo se contássemos com parcerias (nomeadamente com as entidades oficiais) que permitissem que a nossa reflexão e formação tivesse ainda mais impacto entre os professores. Mas estamos satisfeitos com o que alcançamos e sobretudo motivados e fortalecidos para continuar. A Educação Inclusiva é um desígnio nacional assumido por milhares de professores, por pais, por alunos, pelo Governo e pelo Presidente da República; não estamos a falar sozinhos: estamos a oferecer o nosso trabalho para criar um serviço de qualidade para atingir um objectivo estratégico e ético do nosso país.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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