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Trinta e três anos após Abril o sistema partidário português está desadequado e esgotado

As coisas não são nem acontecem como parece que acontecem.
Se fossem e acontecessem como parece que acontecem não seria necessária a ciência.
A aparência limita-se a ocultar a realidade.
Eis uma das razões porque em política se não deve correr atrás da aparência.
E, menos ainda, de planear a acção política com base nas aparências.

Mesmo sabendo que a aparência é uma forma de ocultar a realidade, poucos negarão existir em Portugal uma profunda crise de representação partidária. As várias aparências da crise são isso mesmo, aparências. Mas são um claro sinal que por detrás delas se oculta uma crise bem mais profunda, com causas mais sérias, do que a aparência permite entender. Crises de liderança dos que oficialmente são considerados «a direita de governo», ou exuberante vitalidade e unanimismo dos que são tidos como «a esquerda de governo», são apenas disfarces da profunda crise de representação política que afecta a sociedade portuguesa. Tanto assim é que se aqueles que agora estão no governo caíssem na oposição, e os que estão na oposição caíssem no governo, imediatamente se invertiam os papéis e as aparências.
Os partidos políticos foram inventados no Ocidente industrializado e burguês, como forma de representação dos interesses de grupo e de classes. Organizaram-se em função de uma sociedade muito concreta e em torno de corpos ideológicos e doutrinários que traduziam maneiras, muito próprias, de pensar a construção e o desenvolvimento da sociedade e o modo de lá chegar. Os velhos partidos foram o instrumento que as diversas elites, e as diversas vanguardas, encontraram para reunir e conduzir os seus apoiantes e, se para isso tivessem força, promover a construção da sociedade segundo os seus interesses e valores. Importa não esquecer que nem as ideologias, nem os modos de viver são construções eternas, nem são eternas as formas de organização partidária que em tempo próprio as exprimiram.
A árvore da política partidária foi desenhada com dois ramos fortes brotando do mesmo tronco. Um, crescendo da esquerda e outro, da direita. Tendo-se ambos ramificado podemos falar, no plural, das esquerdas e das direitas.
Se aceitarmos que as esquerdas querem representar os que desejam uma sociedade mais igualitária, capaz de dar a todos poder e direitos de cidadania, e, se as direitas defendem uma sociedade desigual, em que caiba às elites o direito de conduzirem a sociedade recebendo em troca maior poder económico e politico, então, será ainda desadequado extinguir os conceitos de esquerda e de direita. Por detrás destes conceitos ainda se escondem potenciais modelos antagónicos de sociedade, de fazer política e de construir percursos históricos alternativos.
Os novos e multifacetados problemas que brotam do devir histórico não fizeram desaparecer a maior parte dos velhos problemas do passado. Acentua-se a injusta distribuição do poder e da riqueza. Não desapareceu, antes se exacerbou, a exploração do trabalho pelo capital. A desumanização do trabalho aprofunda-se. A sociedade está a ser mais bárbara e bipolar. As classes médias estão em empobrecimento e em extinção. Uma minoria de escandalosamente ricos e poderosos reúne-se em torno do pólo rico do eixo da história, enquanto em torno do outro se agrega a maioria do povo cada vez mais pobre e sem direitos de cidadania. Na construção da história da humanidade, o povo e os povos, continuam a não ir equilibradamente juntos.
A ditadura do pensamento único vai-se reforçando. E se a ideia de esquerda e direita não perdeu de todo o sentido, muitas das organizações partidárias, que se arrumavam sob estes chapéus, elas sim, perderam o conteúdo, o rumo ideológico e doutrinário. Não será por acaso que a Alemanha é governada por uma coligação de tradicionais partidos rivais. Ali, resta ao povo escolher o líder de tal governo. Na Inglaterra, Blair adiou o problema. Os trabalhistas desistiram do trabalhismo e os conservadores desistem agora de ser conservadores! Mais um futuro governo dois em um? Outros países como a França ou a Itália viram, nos últimos anos, o seu sistema partidário ruir e atravessam uma fase de difícil reconstrução dos seus sistemas de representação política. E Portugal?
O nosso sistema partidário, está globalmente marcado por um tempo que já é história. Está completamente desadequado do que é hoje o mundo e a sociedade portuguesa. Os partidos de governo ? PS e PSD sempre tão próximos ?, envelhecidos, esgotados, sem ideologia, sobrevivem como agências de emprego. Dos seus fundadores, os que ainda vivem, parece terem uma velhice de desconforto político. Os quadros intermédios e de base ? que nunca tiveram formação política séria ? envelheceram, instalaram-se e sobrevivem no afã de guardarem para si, ou transmitirem por herança aos seus descendentes, os empregos, os favores, os penachos e os pequenos poderes locais. Os novos dirigentes ? já «formados» nas manigâncias dos partidos ? sem ideologia, «pragmáticos», isto é, oportunistas, vivem da imitação preguiçosa das aparências das modas de governação estrangeira. A sua incapacidade para ler e entender a realidade portuguesa e de para ela encontrar rumos específicos de desenvolvimento, é total e aflitiva. Vivendo da espuma do tempo, do circunstancial e do efémero, sem projecto, estão condenados a ter uma visão cada vez mais parcial da realidade e a enclausurarem-se na realidade virtual que no poder vão tecendo dia a dia. O melhor que lhes pode acontecer é que os seus partidos estoirem depressa. Uma nova realidade talvez ainda lhes permita descobrir que há política e que há vida.
Os partidos excluídos do poder ? O PCP e o Bloco de Esquerda ? foram reduzidos a organizações de programático protesto.
Perdida a referência ideológica matricial, o PCP é hoje, mais do que um partido, uma organização sindical de protesto e de frenética agitação de rua. O intelectual colectivo, tão acarinhado por Gramsci, perdeu-se ali por completo. O vazio ideológico entontece.
O Bloco de Esquerda, passe o exagero, não se livrou ainda das velhas práticas que fizeram de cada militante, uma organização e uma seita. Talvez seja preciso esperar pela reforma política dos velhos e das velhas que sempre estiveram convencidos que uma só ideia, a sua ideia, salvará globalmente e para sempre o mundo. Hoje por hoje, O Bloco continua essencialmente uma federação de pessoas, cada uma com a sua ideia e todas com umbigo.
O CDS é uma inexistência ou uma «infelismência». Descartada a democracia-cristã, a «coisa» sobrevive virtualmente não por intervenção divina, mas de alguns amigos que ainda tem na comunicação social.
A sociedade portuguesa precisa de ser serena e globalmente discutida. Com o actual quadro partidário não vamos lá. A crise global do Estado e do nosso sistema partidário não tem remédio. Não vamos lá com reformas. É preciso que os partidos de governo se partam e reconfigurem e com isso obriguem os outros a repensarem-se. Um novo quadro partidário capaz de soltar amarras e energias é hoje uma exigência nacional. O que temos é tão só um pântano onde o voto serve apenas para manter nele a morte em pé.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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