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Marxismo e educação - depoimento de João Paraskeva

João Paraskeva
Professor do Instituto de Educação e Psicologia
Universidade do Minho

Infelizmente, a teoria marxista tem sido votada ao ostracismo e/ou domesticada, quer nos cursos de formação de professores, quer nos cursos de educação. Obviamente que isto não acontece por descuido. Hoje há uma massa de pessoas ? alunos e professores ? que deveria compreender que o seu acesso à escolarização e ao ensino superior só se tornou realidade, precisamente porque no passado se foram sucedendo um conjunto de lutas ? tantas delas sanguinárias ? e de conquistas de direitos (a democracia, a liberdade, o direito à educação, à saúde e à justiça) levadas a cabo por uma miríade de movimentos sociais e de pessoas que foram profunda ou mesmo até totalmente influenciados pela teoria marxista. Alguém se atreve a negar o papel preponderante que áreas como as do ensino e da educação tiveram neste particular? Alguém nega que, não obstante todos estes notáveis direitos conquistados ? hoje habilmente embrulhados como privilégios ? a sociedade segue sendo 'classada'? Alguém nega que a melhor análise de classe foi feita por Marx? Alguém nega que o trabalho docente é um trabalho de género? Alguém nega que o trabalho doméstico ? com profunda influência no trabalho docente - é um trabalho de género? Alguém nega que vivemos num estado que continua cada vez mais classado, racializado e genderizado? Mais, durante anos, o Marxismo foi acusado de ser uma plataforma de análise reducionista reduzindo indevidamente tudo a uma equação económica, que a dialéctica base ? superstrutura era de todo errada para explicar os processos sociais.
Ora, para pasmo, tem sido a direita (está certo que muitos dos que estão hoje à direita tentam esquecer o seu berço maoista, trotskista marxista, leninista) que tem usado a economia para fundamentar toda a sua estratégia política, tem sido a direita que se ancora na economia como cheque inevitável de credibilidade para todo o quadro de políticas que têm vindo a massacrar cada vez mais as classes mais oprimidas. Como refere Amin, a crítica ao determinismo económico, deve ser formulada precisamente à direita, tal como se percebe de uma forma bem palpável perante as políticas de ajustamento estrutural. Há que admitir que a economia de mercado vem reforçar a tese marxista 'base-superestrutura'. Como deixei dito no livro Marxismo e Educação ? Volume 1, hoje 'os melhores marxistas' estão à direita. O Capital constitui hoje ? como nos alerta Thomas Friedman ? obra de estudo obrigatória para os executivos de topo das grandes corporações 'norte-americanas'. Perante isto, como é possível que se possa obter uma licenciatura, ou um mestrado ou mesmo um doutoramento sem se tropeçar numa linha que seja ? por mais insípida que seja - de um texto de Karl Marx, Marxista ou Neo-Marxista? Uma linha sequer!!! Como é possível viver-se um silêncio quase absoluto em torno de uma plataforma teórica que de uma forma directa ou indirecta contribuiu para o ser e estar presente de milhões de pessoas. Ao invés, assistimos à petrificação dos formandos em obtusos e mecânicos quadros discursivos, como o das competências, dos projectos educativos, de actividades de enriquecimento curricular, novas tecnologias, novas oportunidades, formação emancipatória, autonomia, cartografias de avaliação para tudo o que mexe e o que não mexe porque pode ser que venha a mexer, uma linguagem destinada ao que Gramsci de uma forma brilhante denominou por hegemonia na sua versão não coerciva.
O meu trabalho situa-se em torno de uma análise relacional da educação no âmbito das políticas educativas e curriculares. Digo isto não porque me encontro com poder para demarcar um domínio científico ? e assim impedindo outros -, até porque não se colocam portas ao mar, mas porque é neste domínio que tenho trabalhado desenvolvido e publicado em insuspeitos e credíveis espaços científicos. A educação é um compromisso político e deve ser nessa base debatido. Só uma análise relacional da educação permite compreendê-la também como uma praxis atravessada por dinâmicas de classe, raça e género que se interpenetram com categorias económicas, políticas, culturais e ideológicas, etc. Isto é importantíssimo se queremos compreender e debater os conteúdos da escolarização ? uma questão que, julgo, continuo sozinho a tratá-la em Portugal ? e aqui a teoria marxista e neo-marxista (ser neo-marxista não é ser anti-marxista) dão-nos ferramentas pertinentes, quer para aprofundarmos a tensão falsa consciência vs consciência parcial, quer para compreendermos o interface do crítico e do pós-estrutural, quer para aprofundarmos a tensão "base-superestrutura" (e aqui, provavelmente, como ficou claro deste encontro, importa começar a tentar compreender ao que nos referimos quando tentamos definir economia, quando pugnamos por análises paralelistas sincrónicas, não sincrónicas, como nos avança Michael Apple, etc), quer para compreendermos como a direita tem conseguido ser triunfal porque tem ganho a batalha pelo senso comum, quer para compreendermos que não nos podemos esquecer que é ao nível do senso comum que eclodem as batalhas culturais e o papel que os conteúdos da escolarização têm na edificação e cristalização desse mesmo senso comum, quer para compreendermos como a escolarização legitima a dialéctica classe, raça, género, quer para compreendermos que o importante é mesmo lutar por uma educação que transforme a sociedade; mais, que ouse transformar a verdadeira concepção e prática de poder.
Provavelmente, hoje mais do que nunca, marxismo e neo-marxismo ajudam-nos a analisar, para me socorrer da expressão de Boaventura de Sousa Santos, os cemitérios cada vez mais inacabáveis de promessas traídas a milhões de milhões de pessoas, que como diz Bauman, constitui uma espécie de consciência moral da modernidade. É urgente a criação em Portugal, sem demoras, de um sério Centro de Estudos Marxistas (ou Marxóide ? se quisermos prestar atenção às posições de Henry Giroux e de Peter McLaren, neste particular). Este é sem dúvida um dos grandes desafios que se encontra ante nós, miseráveis modernos ? como bem se (nos) confessou Bourdieu.

(Depoimento escrito)


  
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

João Paraskeva
Universidade do Minho
João Paraskeva
Universidade do Minho

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