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Santa Iria, a deusa das águas
É por demais conhecida a lenda da mártir Iria, jovem e formosa, alvo de lascivos e doentios desejos, vilmente assassinada e lançada às águas, que a transportarão carinhosamente nos braços até fundear frente a "Scalabis", onde permanece ainda hoje num maravilhoso túmulo de alabastro, construído com certeza pelas potências celestes e escondido do mundo pelas águas protectoras do Tejo.
Resistindo a todos os esforços para a deslocar, a mesma manifestou assim, de forma indubitável, o desejo de aí continuar, justificando portanto, em sua honra, a renomeação da velha urbe, de "Scalabis" para "Santa Iria" ou "Santa Irene".
Igualmente em sua honra, diz ainda a lenda, D. Dinis mandou erguer sobre o túmulo (pela última vez mostrado, a rogo da "Rainha Santa") um consagratório padrão que, dois séculos e meio depois, a Câmara de Santarém terá mandado revestir de cantaria, colocando no topo a imagem da Santa, ainda hoje, aí, alvo de devoção local.
Dela, diz a crença popular, que se as águas das cheias alguma vez lhe chegarem aos pés... o mundo acabará!!
Na verdade, enquanto simbólica de todas as hilogenias, a imersão equivale no plano humano à morte e, no plano cósmico ao dilúvio, que dissolve periodicamente o mundo no oceano primordial.
Mas a imersão nas águas não corresponde, nunca, a uma extinção definitiva: apenas a uma reintegração passageira no indiferenciado, à qual se sucede, inevitavelmente, uma nova existência, seja biológica, seja virtual ou sotereológica.
Princípio do aleatório, as águas precedem assim a criação, reintegrando-a depois periodicamente por absorção, fundindo-a temporariamente no caos niilista, donde há-de, mais tarde, emergir renovada, entenda-se recriada.
Desintegrando as formas, as águas abolem a história (isto é o passado) possuindo deste modo as virtudes do esquecimento e capacidades de purificação e renascimento. Quem delas emerge, transforma-se portanto em bem mais que uma pessoa nova: numa nova pessoa; pura, isenta de pecados, rejuvenescida!
Ciclicamente como acontece no baptismo. Ou de uma forma mais perene e prolongada,
A imersão mítica e dramática de Iria, transforma-a, assim, numa nova entidade; renascendo numa nova dimensão, próxima agora da esfera do divino!
Resultando de um drama de inimaginável violência, potencia, ainda mais, a intensidade energética própria dos tempos de transição!
É a concepção cíclica da vida, simbolizada aqui no conjunto "água-lua-mulher", que com a tríade "água-lua-devir" se conjuga em simbiose. Pois a lua, presidindo a todos os fluxos líquidos, dá corpo a uma estreita ligação com as inundações e os dilúvios. E a água simboliza a mudança, catastrófica ou não, do perpétuo devir.
Assim, Iria, adquire os atributos de uma divindade das águas, logo da regeneração e da fertilidade, naturalmente dos campos e da agricultura. Preside e regula as "cheias" que ciclicamente arrasam os campos e os fertilizam, que destroem e criam, num contexto operatório e, inclusive catársico, da morte/renascimento.
Porque o "novo" provém do "velho" e a sua eclosão pressupõe a morte prévia do degenerado, do desgastado!
Aliás, as antigas divindades da agricultura ou da fertilidade (como Cibele, Afrodite, Deméter, Atena ou Prosérpina) eram frequentemente objecto de rituais banhos sagrados. Deusas aquáticas essas, com as valências lunares fortemente ligadas, presidindo aos ciclos vitais da natureza e deste modo, aos grandes mecanismos do devir cósmico, muitas vezes cataclísmicos, algumas vezes apocalípticos.
Assim, Iria, a santa mártir, cujo drama existencial potencia a regeneração, adquire atributos de imortalidade por transubstanciação: diluída nas águas, com estas se funde, numa supressão de formas e lembranças.
Desumaniza-se! Torna-se divina!
Transforma-se, assim, num elemental das águas, qual "ondina", eterna e intemporal, supostamente benéfica na dimensão assumida de divinização cristã.
Mesmo que não se manifeste! Não se revele em episódios mais ou menos hierofânicos!
Mesmo quando as contingências de uma vivência fluvial pouco impetuosa, vão deixando o pedestal, cada vez mais, fora do leito do rio!
Apesar de tudo, está lá! Vigilante!
Respondendo aos milenares apelos das populações ribeirinhas na apaziguação dos impulsos, quantas vezes violentos, de uma natureza nem sempre serena e aprazível!
Catalisa, deste modo, toda a fertilidade dos campos que as cheias cíclicas fertilizam, mas impede, as mesmas, de assumirem, frequentemente, contornos catastróficos.
Marca, assim, os limites da regularidade, a partir do qual o caos impõe a sua vontade!
Assinalando, em última instância, o fim de uma Era e, o sequente, início de outra!

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

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