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Notas soltas de fim de ano

«...somos agora oficialmente europeus de primeira,
espanhóis de segunda
e portugueses de terceira.»

Miguel Torga

1. "O povo que escreve nos jornais não sabe o que pensar a propósito do povo que não escreve nos jornais ? e que não os lê".
Os membros da nova classe dominante olham para o povo com a impaciência e com os preconceitos com que os velhos colonos olhavam para os pretos. E, nos pretos cá da terra, são vistos os mesmos defeitos: são preguiçosos, calaceiros, irresponsáveis, vadios, fogem ao trabalho e mal se apanham com dois euros no bolso embebedam-se, vão para a boa vida e endividam-se. «O povo vive acima das suas possibilidades», dizem. E, lógica da batata, cortam-lhe o salário!

2. Em todo o caso todos querem «modernizar» e pôr a população a par da História, à força de discursos retóricos e de medidas incentivadoras. A direita acredita que é uma questão de ordem, de hierarquia, de mando, de aceitação do mando, de controlo, de humildade, de voluntária e grata aceitação da pobreza, de reconhecimento do mérito alheio e de aceitação passiva das regras de quem impõe os critérios do mérito. A esquerda, quase toda, continua a acreditar que os operários e os pobres, pelo facto de o serem, é que têm a linha justa, o sentido do futuro e a chave para os caminhos da felicidade plena, e que basta que o Estado os enquadre e os trate como filhos dependentes para que a coisa marche. Ora manda a verdade que se diga que o povo não precisa de tutores, nem à direita, nem à esquerda. O que o povo precisa é que lhe paguem decentemente o seu trabalho. Aumentem-lhe as pensões e os ordenados, reconheçam-lhe a importância do trabalho que desempenham e vão ver como ele se cultiva, se empenha e se torna fino.

3. As classes sociais continuam a existir. Não são é as mesmas dos séculos XIX e XX. No destaque que abordamos neste número [páginas 21 a 32] fica clara a importância que o conhecimento tem na definição das classes e do seu papel na sociedade. Como os professores trabalham com o saber e o conhecimento, e com a sua distribuição social, é fácil verificar como eles estão no coração da sociedade actual. Essa é uma das razões que levam os que têm o poder, e os que o querem influenciar, a interessar-se tanto pelo controlo do trabalho dos professores. Colocar o trabalho dos professores ao serviço dos seus objectivos é um desígnio dos que querem dominar a sociedade.
Convém começarmos a pensar em entender o papel que os professores desempenham na distribuição desigual do conhecimento. Que funções nos atribui o poder dominante e o que estamos nós dispostos a fazer? Por comodismo, nuns casos, ou por excesso de zelo, noutros casos, podemos estar apenas a contribuir, com o nosso esforço, para aumentar dramaticamente as desigualdades sociais e o domínio de uns sobre os outros.

4. Sócrates, como qualquer outro ingénuo, pensa que a solução está nas tecnologias, sobretudo naquelas que têm nomes esquisitos ou estrangeiros. Pensa, como outros, que a felicidade da Pátria se obtém fazendo com que cada um seja um especialista de alta tecnologia. Não entendeu que a sociedade é uma organização complexa que precisa de tudo, do engenheiro e do canalizador, e que um problema grave da nossa sociedade está em não sabermos atribuir valor social e económico ao trabalho do canalizador. Os adeptos do Darwinismo social não querem entender a complementaridade das funções sociais e a importância que todos têm nas organizações. Julgam que no mundo dos cavalos só os de corrida, e entre estes, os que chegam em primeiro lugar, devem sobreviver. É por este mau juízo que se esmifram a criar sistemas que abatam todos os cavalos que não cheguem em primeiro lugar. A sociedade não é civilizada sem justiça social.

5. O sistema de ensino em Portugal está a ser progressivamente mais totalitário. Um currículo cada vez mais unificado e rígido. Programas cada vez mais iguais e mais dependentes de exames e, portanto, da uniformidade. Tempos de ensino e de permanência no espaço escolar cada vez maiores. As crianças, adolescentes e jovens vivendo cada vez mais confinados ao espaço escolar e ao sabor da batuta dos adultos. Espaços escolares cada vez mais semelhantes aos espaços prisionais: redes, cercas, portões, guardas, policiamento, câmaras de vigilância. Apresentam-nos isto como modernização e até progresso quando é uma verdadeira regressão. Convém indagar o que podemos esperar de pessoas criadas assim nestas incubadoras e aviários educacionais, ainda por cima improdutivos mesmo em relação aos seus mesquinhos objectivos.

6. Os professores, na sua actividade viva, reproduzem muito do que são. E os «socialistas», com a sua modernização totalitária, estão a querer fazer deles um corpo estratificado, esclerosado, petrificado, hierarquizado, dependente e subserviente. Aposta-se no mérito e no desempenho de funções que exigem maior qualificação e empenho. Mas confunde-se isto com a necessidade de criar uma carreira hierarquizada à maneira antiga. Num tempo em que na educação se clama pela necessidade de equipas pedagógicas, eles apostam no individual contra o colectivo. Num tempo em que se devia apostar na responsabilidade colectiva, eles apostam na política dos capatazes, do chicote e da cenoura.
Ora é possível e desejável reconhecer o trabalho dos professores, pagar-lhes o trabalho que prestam de acordo com o seu desempenho sem que daí decorra a necessidade de os colocar em patamares hierarquizados e definitivos.
Mantenha-se a carreira que estava embora com uma avaliação negociada e revista de modo a ser mais rigorosa e ligada ao trabalho concreto. E complemente-se essa carreira com o reconhecimento de funções especificas que alguns professores vão desempenhando ao longo da sua vida profissional. Faça-se uma grelha de remunerações acrescidas para quem desempenha funções acrescidas e enquanto as desempenhar. E permita-se que as escolas estabeleçam os critérios que levam os professores às funções específicas e aos desempenhos acrescidos. A título de exemplo, um coordenador dos directores de turma deve ter uma remuneração acrescida pela função enquanto a desempenhar e só enquanto a desempenhar. O mesmo para quem desempenha outra função especifica. Seja escolhido para esta ou aquela função aquele que a comunidade escolar acredita ser mais capaz em cada momento, tenha o indigitado o tempo de serviço que tiver. E paguem-lhe a função específica que desempenha enquanto a desempenhar. E avalie-se. Avalie-se em função do que cada um dá para alcançar os objectivos que o colectivo escolar traça para o sucesso dos seus alunos.

7. A Ministra da Educação pensa que os bons professores se criam por despacho e à cacetada e não pelo trabalho e pela capacidade de pensar o trabalho. Faz o que é tradicional em Portugal, ou seja, a importação de modelos estrangeiros condenados a desaparecer, indo sempre buscá-los com atraso à fonte errada. Os nossos supostos dirigentes ficam assim afastados da realidade e enredados nas teias da burocracia que eles mesmos não param de tecer. A actual ministra não mexeu em nada de essencial. Pelo contrário, criou um clima claustrofóbico no meio educacional. Ajudada pelos seus «especialistas» aprofundou a tragédia educativa que já ninguém ignora em Portugal.
O que podemos fazer? Analisar a realidade em que vivemos com o maior rigor possível. Assumir a crítica com total frontalidade. Apontar as necessidades reais do sistema. Criar solidariedades maiores entre professores, corpos docentes e escolas. Colocar os interesses dos nossos alunos à frente dos interesses do governo. E desobedecer sempre que a ordem seja destituída de senso e de sentido.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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