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Grande dia
O Fabiano fintou, na escola primária que frequenta, a burocracia e a mediocridade, que tinha destruído a rede informática agrupando todos os computadores numa sala TIC complicando a vida a quem precisa de computadores para escrever as suas ideias, e a turma voltou a ter um destes instrumentos na própria sala. Com o professor recuperou um aparelho velho apanhado de surpresa pelo aumento da idade de reforma, com a memória muito curta, mas que desde então auxilia alegremente os colegas de Fabiano para escreverem as suas aventuras e exprimirem as suas ideias. Um mês depois de ele ter recuperado o seu lugar no armário próprio que ainda existia na sala, mas que até então tinha servido para pouco, esta turma de 1º ano escreveu 140 textos, todos eles lidos e apresentados aos colegas em momentos diários denominados "ler e mostrar".
No meio de tantos textos, a Cíntia escreve: "Hoje é o grande dia e mais nada".
Para a turma há muitos grandes dias. Mas os que são particularmente grandes, são aqueles dias em que as crianças se tornam protagonistas.
Grande foi obviamente aquele dia em que um pequeno cigano, até então com visitas irregulares à escola, devolveu à turma o que os adultos burocratas lhe tinha tirado: um computador.
Outro grande dia foi aquele em que os pais e as mães eram convidados para verem a recriação de algumas experiências científicas, com os poucos meios que a própria turma arranjou, uma vez que os adultos que se dizem responsáveis cortam verbas para o ensino público, sem utilizar as que subsistem para comprar o que a turma realmente precisa.
Nos últimos dois meses houve outros dias grandes. As crianças da escola toda estão fartas de esperar por um projecto de requalificação do espaço exterior, tempo de espera que para alguns entre eles ultrapassa o seu próprio tempo de vida. A turma juntou-se aos colegas mais velhos, para fazer um inquérito a todas as crianças da escola e registar o que querem no recreio.
Interpretaram juntos os resultados apresentados em gráfico pelo velho computador e, com a ajuda dos mais velhos, construíram uma maqueta que evidencia uma proposta concreta de reorganização do espaço de recreio, em função dos desejos de todos. Expuseram toda a informação recolhida em cartazes, nos corredores da escola, à porta da sala.
Grandes dias.
No meio do processo, o local de trabalho das crianças foi transformado por um dia em local de referendo.
Adultos, garantes da intervenção cívica dos cidadãos, colocaram números de secções de voto e setas indicadoras nas paredes da escola, ao lado de pinturas e desenhos de crianças. Com duas excepções: os relatos do esforço de intervenção cívico das crianças destas duas turmas, para alertar quem decide que urge a requalificação do recreio, foram cobertos por editais e números de secções de voto, colados com fitacola, que ao retirar, rasgam parte do seu trabalho. A pergunta fica no ar. Porque é que só foram estes os trabalhos retirados aos olhos dos adultos que decidiram exprimir-se livremente naquele dia?
Será que Cíntia escreveria também: "Hoje é um pequeno dia e mais nada"?
Penso que não. O que interessa são os grandes dias.
Os pequenos dias são dos pequenos espíritos. Dos que normalizam. Dos que decidem pelos outros. Dos que trabalham para as pessoas e não com as pessoas. Dos que vivem de serem vistos estranhando quando não são aclamados.
É mais empolgante registar os grandes dias.
Os dias em que crianças constroem e mostram, escrevem o que pensam, apresentam o que escrevem, discutem entre eles, com o educador que trabalha com eles e com outros, propostas que permitem avançar.
Estes dias que criam a vontade em Fabiano para aumentar a frequência de vindas à escola, em Cíntia e as suas colegas para escreverem cada vez mais textos, confrontando-os com outros textos de outras pessoas, adultas ou crianças.
Estes dias que fazem com que cresça dentro de cada um a ideia que cidadania não é sinónimo de formação cívica.
Que formação cívica é tomar posse do outro com regras e normas.
Que cidadania é tomar posse de si próprio para conseguir, com outros, analisar problemas e melhorar situações.
Grandes dias.

  
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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