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As "mentiras" que a(o)s professora(e)s vão (ter de) ensinar (I)

E se a Europa toda aprendesse a mesma mentira? Ainda ante o pórtico do século XXI, com as Universidades em Portugal todas de cócoras a apanhar os cacos dos estilhaços provocados pela Declaração de Bolonha e a tentar compreender, por exemplo, a MITocolononização dos filets mignonnes das Universidades Portuguesas, e com a classe docente dos ensino superior e não superior em angustiante luta pela sua sobrevivência ? comprando espingardas, perdão clientes, perante o extermínio diário dos seus direitos mais elementares, somos agora esmagados com a peregrina ideia de um manual único de história para os 27 estados membros da União Europeia. Na maternidade deste novo e perigoso delírio colonialista, estão alguns dos representantes dos mesmos protagonistas da génese da Declaração de Bolonha ? a Declaração da Sorbonne, ou seja a França e a Alemanha que se atrevem já a ter público um manual único de história (ou melhor Histoire/Geschichte) para os dois países, para "ajudar a relançar os valores comuns europeus" (cf. Diário de Notícias, 2007 ? 8 de Março, pp., 2-3).
Estamos perante uma estratégia que quer legitimar socialmente o princípio de que estamos perante uma Europa monolítica com uma história monocrómica, o que é de todo uma falácia e levanta uma série de questões. Em primeiro lugar, mais do que estar em causa o conceito de História, está em causa "de que história" estão a falar e "de quem é essa história". Quem a fez e quem a narrou? Estará vertida nessa história a vez e a voz de quem? O delírio chega ao ponto de se querer assumir que a história de cada nação "aconteceu" ? infelizmente a luta pela visão da realidade como construção social está convenientemente passé ? tal e qual do modo como tem vindo a ser tratada, não havendo conflitualidade de qualquer índole. No dealbar do século XXI não deixa de ser arrepiante a forma como se pretende continuar a lutar pelos saberes da escolarização destituídos de toda uma dinâmica de conflito (cf. Michael Apple, 1990). Basta, por exemplo, prestar um pouco de atenção à figura e aos actos de Aristides de Sousa Mendes que claramente dividem viperinamente historiadores e o país. Basta olharmos, por exemplo, para a forma como a descolonização (perdão neocolonização) surge tratada nas Memórias de Almeida Santos e nas Memórias de um Voo Rasante de Jacinto Veloso. Basta, por exemplo, vermos como a investigação documenta as diferentes perspectivas da II Guerra Mundial (a este propósito cf. Stuart Foster e Jason Nicholls, 2004); por alguma razão, o manual de Histoire/Geschichte deixa de fora "os acontecimentos mais polémicos relacionados com as duas guerras mundiais" (cf. Diário de Notícias, 2007 ? 8 de Março, p., 3). Basta prestar atenção, por exemplo, à forma como se edificaram os 'descobrimentos' e determinadas figuras a ele associados e que trataremos com mais detalhe na segunda parte desta nossa análise.
Em segundo lugar, a Europa teima em esquecer ? e não devia - que grande parte da sua história "aconteceu" fora da Europa e isto levanta sérios problemas quando se pretende construir uma visão monolítica da "sua" História. Se olharmos para países como Portugal, França e Inglaterra, percebemos que a sua história não pode ser "contada" a uma só voz. Como dizem os Chokwe na província da Lunda Sul, República de Angola, agarrados a esse verbo 'descobrir' tão ocidentalizadamente edificado, 'fomos nós ? engraçado, aqui o «nós é o outro» que 'descobrimos' o Henrique de Carvalho perdido na floresta a morrer de malária e lhe salvamos a vida'. O que está aqui em causa, no fundo, é não só o início, ainda que tímido, de um currículo comum ao nível dos 27 estados da união, a imposição do tal "pronto a vestir de tamanho único" (Formosinho, 2007), como também um pretensioso e xenófobo princípio da existência de uma cultura comum que deve ser assegurada e transmitida. Imposta. Como tive oportunidade de deixar dito num outro espaço, e referindo-me ao caso de Portugal, o currículo comum é um erro e tem sido um dos grandes responsáveis de uma escolarização segregadora que cada vez mais, multiplica o seu divórcio com a sociedade (Paraskeva, 2002). Esta construção 'do outro' ? e que se quer que a escolarização legitime ? surge aliás muito bem desnudada no próprio manual de Histoire/Geschichte ? "olhamos para os outros a partir do eixo Paris-Berlim e daquilo que são as nossas preocupações", como argumentam os seus construtores. Olhamos quem? Como será possível que em pleno início do século XXI se ouse pela temeridade explícita de uma monocromia, no caso franco-alemã, que arrogantemente ? para ser brando ? se vai outorgando no direito de ir construindo os 'outros'. E quem são esses outros? Que vozes, que interesses e desejos se encontram nesse eixo? Convocando Michael Apple (2000) para o debate, "de quem é o conhecimento" que se encontra nesse manual? De quem será o conhecimento que se irá encontrar no tal manual único para os 27 estados? Quem beneficiará com isso? Claramente, o que aqui está em jogo são relações de poder e é muito importante dominar, não só quem o produz , mas também quem o difunde. Mais, como pode o 'nosso outro' ? afinal tudo depende de um eixo - Jorge Pedreira, não ter formulado pronúncia perante uma questão tão crucial? Na sua Discipline and Punish, Michel Foucault (1977, p. 27) vincou muito bem que o poder produz conhecimento, não necessariamente porque se limita a difundi-lo, ou porque simplesmente se serve do conhecimento, mas precisamente porque poder e conhecimento se implicam mutuamente. É que, na verdade, não há relação de poder sem uma determinada correlação com um campo específico de conhecimento, nem existe conhecimento que não pressuponha e constitua simultaneamente relações de poder.
Em terceiro lugar, não deixa de ser curiosa, não só esta visão una da Europa, como ainda este "provincianamente correcto" sentimento do "sempre fomos europeus", da promoção e desenvolvimento de uma cidadania comum. Esta sede pelo comum surge também bem vincada pelo secretário de estado espanhol para a União Europeia, Alberto Navarro ? fervoroso apoiante do manual único ? "uma história comum, constrói uma ideia de cidadania junto dos estudantes". Ora, este 'cirúrgico' comum, lembrando aqui Gilles DeLeuze e Félix Guattari (1987), deverá ser sempre visto mais como processo de perdas do que um produto de aquisições, conquistas ? 'descobrir(es)'. É conseguido pela diferença. A grande questão que não dá mais para obliterar é que nesta dita história comum europeia, uns poucos milhões fizeram-na acorrentados. Impõe-se assim, neste particular, uma outra questão. O que é Europa? O que é a União Europeia? O que é o alargamento? Quem beneficia? Claramente tem sido muito mais um projecto económico e para muitos povos de muitos Estados-nação periféricos, é difícil negar que a Europa 'descobriu' colónias ? na Europa. Como deixa cair e bem Ulrich Beck (1998, p. 213) a "Europa é um espaço imaginário e não um espaço geográfico". Apoiado no raciocínio de Milan Kundera, Ulrich Beck (1998, p. 213) parte para a proposta de uma Europa que "significa descobrir, ver e ler o mundo com ambiguidade". Convém não esquecer que 'acontecimentos' como a escravatura colocaram África espalhada pelo mundo. Passou a ser o mundo todo. As limitações de espaço, não nos permitem ir ao fundo do fundo das questões. Todavia, perante as problemáticas que temos vindo a desnudar, a existência de um manual único ? no caso de Histoire/Geschichte ? mais não fará do que empurrar a classe docente para a pedagogia da grande mentira (Macedo, 2006), uma pedagogia que transpira processos de obliteração, de engenharia história, de promulgação de uma tradição selectiva do conhecimento. A velha máxima marxista continua bem actual - as coisas não acontecem como parece que acontecem porque se acontecessem como parece que acontecem não seria necessária a ciência. Mais, como deixa Karl Marx bem vincado na II tese sobre Feuerbach (1978, p. 156), "a questão se a verdade 'objectiva' pode ou não ser atribuída ao pensamento humano não é (apenas) uma questão teórica, mas prática". Toda e qualquer tentativa de fabricação de uma identidade cultural global, propõe-nos Anthony Smith (2002, p. 280), resvalará sempre para uma falha de memória. Como deixei dito num outro contexto (Paraskeva, 2006), bem vindos à (re)ocidentalização do ocidente.

Notas

Apple, Michael (1990) Ideology and Curriculum. New York: Routledge.
Apple, Michael (2000) Official Knowledge. New York: Routledge.
Beck, Ulrich (1998) Que és la Globalización? Falácias del Globalismo, Respuestas a la Globalización. Barcelona: Paidos.
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (1987) A Thousand Plateaus. Capitalism and Schizophrenia. Mineapolis: University of Minnesota Press.
Diário de Notícias (2007) E se Toda a Europa lesse o mesmo livro de História? 5º Feira, 8 de Março, pp., 2-3.
Formosinho, João (2007) Currículo Comum. Pronto a Vestir de Tamanho Único. Discursos ? Cadernos de Políticas Educativas e Curriculares. Viseu/Lisboa: Livraria Pretexto/Edições Pedago.
Foster, Stuart e Nicholls, Jason (2004) Quem ganhou a 2ª Guerra Mundial? Retratos das Forças Aliadas nos Manuais de História das Escolas Norte-Americanas, Inglesas, Japonesas e Suecas, Revista Currículo sem Fronteiras, 4 (2), pp., 51-70, www.curriculosemfronteiras.org
Foucault, Michel (1977) Discipline and Punish: The Birth of the Prision. London: Penguin Press.
Macedo, Donaldo (2006) Literacies of Power. What Americans are not Allowed to Know. Boulder. Westview Press.
Marx, Karl (1978) Theses on Feuerbach. In David McLellan (ed) Karl Marx. Selected Writings. Oxford: Oxford University Press, pp., 156 ? 158.
Paraskeva, João (2002) El Currículo como Prática de Significaciones. Cooperación Educativa, 62-63 pp., 8 ? 16.
Smith, Anthony (2002) Towards a Global Culture? In David Held e Anthony McGrew (eds) The Global Transformations Reader. London: Polity, pp., 278 - 286.


  
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

João Paraskeva
Universidade do Minho
João Paraskeva
Universidade do Minho

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