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As incertezas da ciência
Desde o século XVII nos prometeram que, através das ciências, seríamos, mais tarde ou mais cedo, "donos e senhores da natureza". Há muito pouco tempo, Stephen Hawking afirmou-nos, convictamente, que as ciências estão prontas a conhecer "os planos do próprio Deus" e a sintetizar, numa "teoria de tudo", a nossa compreensão das forças fundamentais que governam o mundo físico. De facto, dominam-se os segredos do átomo e já se produz a sua desintegração; graças à "revolução biológica" de meados do século XX e convictos que dominamos muitos dos antigos segredos do mundo vivo,
rapidamente passámos de uma biologia da análise para uma biologia da reconstrução, de que a zootecnia é um produto florescente. E ao nível micromolecular e biomédico? Não me é possível, no curto espaço de um artigo, resumir os hodiernos e espantosos avanços, no campo da ciência. Demais, ainda há quem, fundamentado no paradigma mecanicista, afirme que, pela medição e pelo cálculo, chegará a uma compreensão ideal da natureza. A física, a química, a biologia evoluíram de "ciências da natureza" para "ciências de artefactos", engenharias autênticas, capazes de reconstruírem átomos, moléculas e genes. E, porque se julga que a natureza não tem alma, não passando de uma máquina bioquímica, a tecnociência salvará logicamente o presente e dir-nos-á como será o futuro. No entanto, esta mesma tecnociência que ajuda ao nascimento de extraordinários atletas, não garante que os super-atletas apresentem, para o resto das suas vidas de pós-competição, uma saúde admirável. E assim, de quando em vez, assistimos ao passamento de antigas "estrelas" do espectáculo desportivo, ainda antes de poderem considerar-se idosas, vitimadas pelas mais diversas patologias. Quando são apresentadas ao mundo como figuras paradigmáticas, do ponto de vista físico-biológico, deveria acrescentar-se que, no desporto de alta competição, não se faz desporto para ter saúde, mas porque se tem saúde. E que a sua prática não dá mais vida aos anos...
No dia 9 de Agosto de há dois anos atrás, no hospital de La Rochelle da sua província natal de Charente Maritime, faleceu de cancro na garganta Collete Besson, campeã olímpica dos 400 metros, nos Jogos Olímpicos do México (1968), com 59 anos de idade. Acrescente-se que Colette Besson não era fumadora. Mas era francesa e, em Maio desse mesmo ano, os universitários, seus compatriotas, exigiam que a imaginação fosse poder, rejeitavam a sociedade capitalista burguesa, faziam suas as palavras incendiárias de Herbert Marcuse. O capitalismo, diziam os mais publicitados revolucionários daquele tempo, produz esquizofrénicos tão-só; reintroduz códigos, limites, identidades, para dominar o desejo; a loucura (Michel Foucault foi o primeiro a dizê-lo) é uma construção sócio-política. Derrida, precisamente em 1968, intitulou a sua conferência na Sociedade Francesa de Filosofia: "Différance!" Para este filósofo, diferir é deslocar, frustrar, deslizar. De facto, embora anarquicamente, a universidade francesa queria ardentemente o diferente, o novo. Era preciso desconstruir. E a desconstrução "multiplica as palavras (...) numa substituição sem fim e sem fundo, cuja única regra é a afirmação soberana do jogo sem sentido". Deste turbilhão de palavras e desejos emergia, na opinião pública, uma ideia confusa, contraditória, inexacta da vida política. E os que (como Paul Ricoeur) pretendiam iluminar alguns aspectos ignorados, vincar alguns traços menos expressivos, anunciar os fundamentos ? eram adjectivados de caquécticos, reaccionários ou até fascistas. A França dividira-se e, em 1968, parecia navegar ao sabor da maré...
Até que a professora de Educação Física Colette Besson venceu os 400 metros planos dos Jogos Olímpicos do México, os quais, transmitidos pela televisão e diante da vitória da Colette, concorreram, iniludivelmente, a um reacender do espírito patriótico, que parecia em crise. Quando regressou a França, o general de Gaulle quis recebê-la e condecorá-la. Mais tarde, bateria mesmo "ex-aequo" com Nicole Duclos, sua amiga e compatriota, o recorde do mundo dos 400 metros planos. A Colette Besson (1946-2005) o desporto que praticou não lhe prolongou a vida, mas fez dela uma heroína francesa dos tempos modernos. O desporto não é (não deve ser) uma exortação belicosa de patriotismo, um factor de adormecimento aos cantos de sereia do neoliberalismo que nos envolve, mas pode concorrer à reabilitação do sentimento patriótico. As incertezas da ciência não nos permitem dizer se o desporto (mesmo sem corrupção, sem doping e sem pressões psicológicas insuportáveis) é sempre um factor de saúde, mas há nele um opulento, honrosíssimo inventário de páginas do mais lídimo patriotismo. Ao invocarmos as lágrimas de Colette Besson, no pódio dos Jogos Olímpicos do México, saudemos nela o ímpeto, o pundonor, a grandeza de ânimo, típicos de um intransigente sentimento de pátria. O desporto é, de facto, uma prática exemplar, quando é acima do mais um ideal. E um povo sem valores é como um corpo sem sangue, preparado para a decomposição.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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