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A visão de Darwin ? bactérias resistentes e antibióticos
Termina este mês de Março uma campanha do Ministério da Saúde que visa promover uma correcta utilização de antibióticos pela população. Na verdade, Portugal está entre os países da Europa com maior consumo de antibióticos, apresentando também índices muito elevados de práticas de consumo incorrectas, que reflectem em parte a incompreensão da população sobre a natureza destes medicamentos e das doenças sobre as quais eles são eficazes. Ao contrário daquilo a que nos temos vindo a habituar, esta campanha não é motivada por critérios económicos de redução de custos. A principal razão para uma redução e racionalização do consumo de antibióticos é o aumento do número de bactérias que apresentam resistência a estes medicamentos e que põe em grave risco a saúde pública.
O fenómeno da resistência está muito bem compreendido do ponto de vista científico e é explicado por uma ideia com quase 150 anos de idade ? o princípio da selecção natural, proposto por Charles Darwin para explicar como os organismos vivos respondem ao seu ambiente com uma evolução adaptativa. A ideia é extraordinariamente simples ? uma característica que confira ao organismo seu portador maior sucesso reprodutivo vai rapidamente predominar na população, em detrimento de outras características. E é assim que, desde que foram introduzidos, os antibióticos têm constituído uma pressão para o aparecimento de bactérias resistentes, representando um dos exemplos mais visíveis do processo de selecção natural.
A resistência aos antibióticos é uma característica genética que pode aparecer de forma aleatória, por processos de mutação, e que depois é transmitida de geração em geração. É evidente que num meio ambiente em que é vulgar a utilização de antibióticos, os organismos que possuírem esta característica genética vão propagá-la de forma mais eficiente à descendência do que os seus primos não resistentes, levando à evolução rápida de uma população que não é sensível ao medicamento. No caso das bactérias, a situação torna-se ainda mais complexa porque os genes que codificam a resistência aos antibióticos encontram-se frequentemente em pequenos segmentos de DNA extra-cromossómico que podem ser transferidos directamente entre bactérias, mesmo que de espécies diferentes.
A compreensão destes princípios biológicos básicos permitiria facilmente prever que a utilização de uma pressão de selecção tão poderosa ? literalmente um caso de vida ou de morte ? iria inevitavelmente conduzir ao aparecimento de grande número organismos resistentes. E, de facto, foi logo na década de 40, em que principiou a utilização médica dos antibióticos, que foram feitas as primeiras tentativas de regulamentação do seu uso, que chocaram com as preocupações individuais perante a doença. No entanto, diversos estudos sugerem que um dos factores de maior peso no aparecimento de resistências na comunidade foi o interesse económico da indústria agro-pecuária. A descoberta de que os antibióticos promovem de forma barata e eficiente o crescimento animal levou à sua utilização generalizada como forma de aumentar substancialmente a margem de lucro da produção animal, apesar da previsão fácil das perigosas consequências que daí poderiam advir. Muitas das bactérias resistentes que se desenvolvem neste contexto são comuns a seres humanos e propagam-se facilmente entre espécies por contacto directo, pela cadeia alimentar ou pela simples contaminação ambiental proveniente da utilização de estrume animal nos campos agrícolas. Trata-se de uma verdadeira poluição biológica que passa despercebida. Felizmente, os interesses de saúde pública parecem finalmente ter-se sobreposto aos interesses económicos ? desde Janeiro de 2006 que a União Europeia, empurrada pelas normas mais exigentes da Suécia e Finlândia, proibiu a utilização de antibióticos para promoção de crescimento animal. Os resultados positivos já são visíveis. Tal como previsto por Darwin, muito antes da era dos antibióticos.

  
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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