Uma viagem fantástica pela ARCO 07 (Feira de Arte Contemporânea de Madrid)
Sentados no chão e encostados a um pequeno muro de protecção das escadas de uma estação de metro, na madrilena Praça Callao, à Gran Via, onde, em duas torres quase gémeas, co-existem na disputa dos consumidores, internos e externos, a FNAC e el Corte Inglês, quatro homens, ainda jovens, estendem chapéus à ingenuidade alheia revelando, com palavras simples manuscritas em folhas de papel, o destino a dar ao dinheiro - vinho, cerveja, whiskie, bebedeiras. A poucos quilómetros, no Campo das Nações, onde a Feira Internacional de Arte Contemporânea de Madrid assenta arraiais, um dos actores que Javier Nunez Gasco contratou em Lisboa para novas instalações das "Misérias Ilimitadas, Lda", também estende a mão à ingenuidade alheia, com um cartaz de pedinte, escrito em inglês e a letras a néon para que se veja ao longe. Enorme visibilidade tem igualmente o cartoon que Máximo publica no jornal El Pais e que no dia de 15 de Fevereiro, dia da abertura da ARCO ao público, retratava as próprias instalações da feira com uma não ingénua citação de Marcel Duchamp ? "Arte es lo que el artista llama arte" - pichada numa das paredes. Marcel Duchamp (o que pintou uma Mona Lisa de bigodes) também representado neste ARCO 07, na Galeria parisiense 1900*2000. Voltando às "Misérias Ilimitadas, Lda", instalação que antes de se instalar na ARCO 07 esteve na "Luzboa 2006", também a criar algum impacto mediático como Javier Nunez Gasco gosta (1), é de registar que quando passei pelo mendigo de serviço no stand 9G205, ouvi alguém perguntar, em castelhano, se ele estaria mesmo a pedir. Saberá alguém responder a esta questão? O Tiago Roldão, um jovem universitário de Química que andou pela ARCO a satisfazer a sua paixão pela fotografia, passou pela instalação das "Misérias Ilimitadas, Lda" num momento em que o actor se ausentara deixando o clássico aviso "volto já". Mesmo não se apercebendo da existência do actor-pedinte, nem do facto dele ser português, o Tiago elegeu a instalação como uma das mais bem conseguidas. Segundo os testemunhos do próprio Javier Nunez Gasco, os actores-pedintes, recrutados em Portugal por anúncios de jornal, estariam a ganhar 300 euros pelos cinco dias da ARCO 07 e mais 70% dos óbolos que sempre acabam por cair numa caixa de esmolas, mesmo debruada a néon. Esta história dava letra para uma milonga. Até Jorge Luís Borges escreveu letras para milongas. Pelo menos uma, como a que ouvi, no Teatro Gran Via, num espectáculo de música e dança flamenga e andaluza, sob os auspícios da cantora Carmen Linares.
O gosto do coleccionador
Tivesse o senhor 5% vivido meio século mais tarde, de 1919 a 2005 e não de 1869 a 1955 como viveu, e a história da ARCO talvez tivesse sido outra, pois Calouste Gulbenkian seria, seguramente, um dos convidados especiais da feira, na sua qualidade de coleccionador, apesar das suas conhecidas exigências. É publico, pelo menos desde o ano passado, aquando da exposição "O Gosto do Coleccionador", que Calouste Gulbenkian (o senhor 5%, por deter 5% do petróleo da Pérsia) dizia não ter "qualquer intenção de continuar a acumular obras que não possuíssem o mais elevado interesse do ponto de vista artístico". Escreveu-o em 1937, numa carta dirigida ao egiptólogo Howard Carter. Sabe-se também que Calouste Gulbenkian (com excepção das jóias que encomendava e comprava a René Lalique) coleccionava essencialmente obras antigas, criadas em épocas muito anteriores à época em que viveu. A ARCO seria um pretexto para uma deslocação a Madrid, que não se esgotaria na visita aos pavilhões da Feira, no Campo das Nações, nem à "Guernica" de Picasso, no Museu Rainha Sofia. No mínimo voltaria ao Prado, mesmo sem Tintoretto, temporariamente em exposição (até 13 de Maio de 2007) paredes meias com as "Meninas" de Velasquez. Volto à leitura do el Pais, na edição do dia em que a ARCO 07 abriu ao público, e cito Luís Fernandez-Galiano, arquitecto e articulista. "En un mundo agnóstico, el arte es la última religión. Más allá de las fracturas entre las confesiones, el arte se propone como un credo universal. Sus sacerdotes se escuchan con reverencia, sus liturgias se siguen con devoción y sus templos colonizan el planeta con fervor unánime. Los escépticos argumentarán que esos templos están gobernados por mercaderes, que el comercio de reliquias artísticas es una rama de la industria turística, y que sus ceremonias forman parte de las pompas propagandísticas del poder". No ano dos 30 anos do Centro Pompidou (Paris) e dos 10 anos do Guggenheim-Bilbao, duas "igrejas" em franco progresso e com ramificações em Shanghai, Singapura e Hong Kong (o Pompidou) e em Guadalajara e Abu Dhabi (o Guggenheim), até o Museo del Prado, como refere Luis Fernández-Galiano cede às "incertidumbres litúrgicas del nuevo culto" aceitando a insuspeita exposição de Tintoretto já não apenas paredes meias com a mulher nua e a mulher despida de Goya, mas também com uma mostra de fotografias de Thomas Struth. As dez fotografias deste artista contemporâneo alemão, temporariamente instaladas entre as obras da exposição permanente do Museu do Prado, como testemunhos da interacção de pessoas em espaços públicos (na sala 14 do próprio Museu do Prado, onde se expõe um retrato de Filipe IV, caçador, num óleo de Velasquez, está agora também uma fotografia de Struth, tirada naquela mesma sala, sob o título "raparigas asiáticas com Filipe IV, o caçador"), são a prova de que a contemporaníssima arte fotográfica já não é exclusiva dos Centros de Arte Contemporânea. Em Madrid, nestes dias de ARCO 07, não faltaram raparigas asiáticas. O país convidado desta 26 ª edição da Feira de Arte Contemporânea foi a Coreia do Sul, que desde os Jogos Olímpicos de 1988 e o Campeonato Mundial de Futebol de 2002, sonha ser a locomotiva (ou pelo menos uma das locomotivas) da Ásia. Estes caminhos em busca da hegemonia económica também passam pelos caminhos da Arte. Na Arco 2008 será a vez do Brasil. E que estará, dentro de um ano, no Museu Nacional Rainha Sofia? Este ano, a par da ARCO, o norte-americano Chuck Close expôe uma série de grandes retratos, numa síntese entre a pintura e a fotografia utilizando as mais variadas técnicas num registo que alguns consideram ter desaguado num puro pós-modernismo. Também esteve na ARCO, com um auto-retrato, na Galeria Pace Wildenstein.
O papel dos jornais
Volto aos pavilhões (7 e 9) da ARCO para descobrir, na Galeria Herrmann & Wagner, de Berlim, uma nova vocação para o papel dos jornais, no caso por via de uma instalação de Maria & Natalia Petschatnikov, duas gémeas de São Petersburgo, vinte anos mais novas do que eu, nascidas em 1973. Chama-se "paperwork" e é uma instalação realizada com papéis de jornal ? "material extraordinariamente efémero, portador de informação", nas palavras das próprias artistas. Desenvolvido numa localidade catalã ? El Bruc ?, onde as duas irmãs estiveram durante um mês, esta instalação serve-se de papeis de jornais escritos num idioma que as artistas não conhecem para criar um cenário de ficção que suporta uma estranha conversação entre dois personagens que, supostamente, utilizam o mesmo aparelho telefónico, uma cabine pública que, aos nossos olhos de proprietários de múltiplos telemóveis, já parece um aparelho antigo de irreversível incomunicabilidade. Ironicamente, o papel dos jornais parece ser, aqui, o da promoção ou o do veículo de uma incómoda e desconhecida incomunicabilidade, mesmo considerando que a própria instalação parece absorver e ocupar a totalidade do espaço (como acontece com a comunicação) sem, no entanto, estabelecer uma relação mutua entre os personagens que protagonizam a situação criada. De tudo isto, destes dias em Madrid para uma feira como a ARCO, só não sei por que razão guardei na memória desta viagem esta instalação das irmãs Petschatnikov. Talvez por ainda acreditar no primado da cultura bibliográfica, isto é, em certas palavras impressas em papel, nem sempre escritas para servirem de ópio.
ARTE ACOMODADA EM "JULGAMENTO"
Num registo formal semelhante ao de um julgamento, um forum internacional de especialistas em Arte Contemporânea, debateu, na ARCO 07, o presente e o futuro da criação contemporânea. No banco dos réus, os artistas Anton Vidokle e Tirdad Zolghard foram acusados de conspirar com a burguesia para reduzir o espaço de criação artística. Neste tribunal especial, o juiz presidente, o crítico e editor da revista Frieza, Jan Verwoert, foi o moderador de um debate que teve Charles Esche, director do Van Abbemuseum de Eindhoven, como advogado de defesa, e Vasif Kortun, director da Platform Garanti (Istambul) e Chus Martínez, directora do Frankfurter Kunstverein, como acusadores públicos O julgamento debate centrou-se nas contradições existentes quando a independência artística esbarra no "aburguesamento" e na dependência de instituições oficiais ou privadas, e nos condicionalismos que existem por força de uma evolução que se faz muito em torno da comercialização potenciada pelas ferias de arte contemporânea. Neste debate, alguns especialistas consideraram que o futuro passa pelo desenvolvimento de espaços de criação livre, for a do circuito tradicional de galerias ou instituições. O debate, organizado por uma escola de exposições de Berlim (Unitednationsplaza) dirigida por Antón Vidokle (um dos "réus" deste julgamento). contou com o testemunho de vários intelectuais como Maria Lind, escritora, comissária e directora do IASPIS, de Estocolmo, os artistas Setareh Shahbazi, Fia Backstrom e Liam Gillick, o crítico madrileno Javier Garcia Montes e o director do Extra City de Amberes, Anselm Franke, entre outros. Um futuro que também passa por sítios como o que existe em http://www.saatchi-gallery.co.uk/ e que é um museu virtual com milhões de visitas diárias que democratiza a fruição das artes plásticas a níveis até agora nunca vistos para que a arte deixe de ser o "ópio das elites", expressão de Luis Fernandez-Galiano aproveitada para título deste roteiro/reportagem pela ARCO 07, um local de peregrinação para muitos portugueses, incluindo alguns ligados a galerias.
MUSEU RAINHA SOFIA INVESTE DOIS MILHÕES
O Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofía decidiu comprar na edição da Feira da ARCO de 2007 obras no valor global de 2.089.317 euros, sensivelmente o dobro do valor investido em obras durante a Feira de 2006. O museu que adquiriu, nesta feira, 31 obras (3 pinturas, 6 esculturas, 13 fotografias, 6 trabalhos em papel e 3 vídeos) recebeu do Ministério da Cultura um subsídio no montante de um milhão de euros. Eis a lista de obra adquiridas
PINTURA
Luís Fernández. Naturaleza muerta, 1950 (192.600 ¤) Darío Urzay. Topograma 1, 2005 (20.880 ¤) Albert Oehlen. Koom !!, 2005 (315.520) ¤
ESCULTURA
Ángel Ferrant. Ondina, 1945 (69.600 ¤) Jan Fabre. Theezakjeskamer, 1979 (30.000 ¤) Cristina Iglesias. Pavillion Suspended in a Room (2), 2005 (232.000 ¤) Rebecca Horn. Leonardo?s Brautwerbung, 2006 (105.880 ¤) Juan Asensio. Sin título (E-230) (32.400 ¤) Nathan Carter. Negative off out, 2007 (13.320 ¤)
FOTOGRAFIA
Dora Maar. Mendigo ciego, 1934 (40.600 ¤) Chuck Close. Study for Richard II, 1969 (209.636 ¤) Tunga. Xifópagas Capilares, 1985 (14.000 ¤) Pablo Márquez. Ophelia, 2004 (4.640 ¤) Jean-Baptiste Huynh. Mali-portrait XXIV, 2004 (40.600 ¤) Desiree Dolron. Study for Xteriors XIII, 2006 (15.000 ¤) Darío Urzay. Topograma I (positivo), 2005 (3.944 ¤) Aitor Ortiz. Muros de Luz 021, 2005 (16.000 ¤) Chuck Close. Self-Portrait / Quad, 2006 (60.981 ¤) Per Barclay. Maria, 2006 (9.000 ¤) Pierre Gonnord. Maria, 2006 (17.400 ¤) Frank Thiel. Stadt 12/48 (Berlín), 2006 (19.488 ¤) Miguel Ángel Gaüeca. Hand, 2007 (5.382 ¤)
PAPEL
Kurt Schwitters. MZ 442, 1922 (176.750 ¤) Salvador Dalí, André Breton, Gala, Valentine Hugo. Cadavres exquis, 1930-1934 (137.800 ¤) Lygia Clark. Espaço Modulado (221), 1958 (42.000 ¤) Lygia Clark. Espaço Modulado (219), 1958 (42.000 ¤) Lygia Clark. Espaço Modulado n º 10 (210), 1958 (42.000 ¤) Richard Serra. Untitled, 1990 (64.960 ¤)
VIDEO
Alfredo Jaar. Muxima, 2005 (70.400 ¤) Luis Bisbe. SS//TT, 2007 (10.536 ¤) Eugenio Ampudia. Chamán, 2007 (34.000 ¤ )
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