Quando tinha 8 anos parti um braço. Um soldado da Guarda Republicana pegou em mim ao colo, correu até ao quartel, e levaram-me ao hospital num carro não sei se da instituição se de algum oficial. Lembro-me sempre deste episódio quando tento imaginar o que pode fazer hoje uma família sem carro numa aldeia, numa vila, ou mesmo numa cidade sem urgências médicas, quando um filho tem um acidente. Em situações de excepção, e depois de não conseguir outras ajudas, penso que deveria poder pedir auxílio à Guarda Republicana, ou à PSP. São instituições nacionais que dispõem de viaturas e de meios de comunicação. Custa-me imaginar a situação de uma família aflita com um carro da GNR, ou da PSP, a passar perto sem fazer nada. Sugiro que tenha uma conversa com o ministro da Administração Interna para ele sensibilizar a GNR e a PSP para situações deste tipo. A dificuldade está em definir as situações de urgência e excepção. Tenho presentes as palavras de V. Ex.ª quando disse na televisão que 80% dos casos das pessoas que acorrem às urgências dos hospitais não se justificam. O problema está em que, em muitos casos, só depois de ir às urgências se sabe que a situação o não justificava. Sugiro, assim, a V.Exª. que organize um serviço nacional contactável telefonicamente a qualquer hora do dia ou da noite, que informe, aconselhe e acompanhe as pessoas que pensam ir a uma urgência. A família de uma criança que parta um braço, por exemplo, entre Valença do Minho e Monção, receberá o conselho de seguir para Monção. Mas, se a criança tiver batido com a cabeça e estiver com vómitos, receberá o conselho de seguir directamente para Viana do Castelo e o serviço alertará imediatamente o hospital para o caso urgente que vai chegar. No que diz respeito ao transporte, o serviço providenciará que chegue ao local o transporte mais adequado podendo, nos casos urgentes, pedir a ajuda da GNR e da PSP. Em qualquer caso, uma vez contactado, o serviço ficará a acompanhar o problema. As pessoas numa situação difícil saberão, assim, que o seu caso não está a ser ignorado. Penso que não será difícil a criação de um serviço com estas funções, que será certamente mais barato e mais imediatamente benéfico para as populações do que a melhoria da rede rodoviária com que o ministério espera poder vir a atenuar os inconvenientes da supressão de várias urgências. Permito-me falar num outro assunto. Eu não sou só um especialista em braços partidos. Também o sou em tuberculose. No meu último ano de professor, quando tinha 69 anos e pensava ir numa missão a Timor, apanhei uma tuberculose. Só o soube por acaso. Num dia em que estava com alguma tosse cuspi um pouco de sangue. Fui ai Hospital de São José onde consideraram que devia estar com um princípio de pneumonia e me receitaram um antibiótico. Por uma questão de precaução, aconselharam-me passar no serviço de combate à tuberculosos que havia então na Praça do Chile para fazer uma análise. Assim fiz e, uns dias depois, quando já me sentia inteiramente bem, recebi um telegrama com a notícia do resultado da análise ser positivo. Tive de seguir um rigoroso tratamento diário de antibióticos durante 6 meses. Assim, sei algumas coisas sobre o assunto. Lembro-me de um dia a médica me dizer: "Duas mil pessoas com tuberculose em Lisboa não é grave, mas 15 com bacilos resistentes é terrível." Os sanatórios do Caramulo, que existiam desde o tempo da Rainha Dona Amélia, foram todos encerrados. A decisão parece ter sido de economistas que julgaram que a tuberculose ia acabar. O País não tem, assim, condições para oferecer um tratamento em regímen de internamento a doentes em condições económicas difíceis. Uma imagem que guardo é a de um cabo-verdiano, trabalhador da construção civil, desempregado, tuberculoso, com 55 anos e a parecer 65, avô e que vivia com os netos numa barraca. Em qualquer lugar de uma Europa minimamente civilizada, que mais não fosse por razões de Economia, ser-lhe-ia oferecido um período de internamento numa instituição em que pudesse ser tratado sem contagiar os netos, e pudesse, eventualmente, seguir cursos de formação e reciclagem, como é corrente, por exemplo, em França. No caso dos doentes com bacilos resistentes, a estadia em sanatórios devia ser fortissimamente aconselhada, para seu bem e para não contagiarem a comunidade a beber galões nos cafés de Lisboa. O Presidente Jorge Sampaio, hoje responsável à escala internacional pela luta anti-tuberculose, ainda pode aprender muito em Lisboa. Fiquei com um grande respeito pelas pessoas do centro que funcionava na praça do Chile, que tudo faziam para que os doentes seguissem a medicação diária. Mas o seu trabalho foi dificultado. O Hospital de Arroios foi vendido a privados pelo ministério da Saúde, creio que numa altura em que V.Exª. era ministro, antes mesmo de se saber para onde iria o centro que nele estava inserido, que acabou por ir para a Av. 24 de Junho, onde não há metro e é bastante mais difícil os doentes irem tomar a medicação diária. O Hospital de Arroios era um edifício indicado para nele instalar um hospital para doentes já convalescentes, ou em situação terminal, em que já pouco há a fazer e a preocupação deve ser a de lhes facultar, a eles e às famílias, algum conforto. Um amigo meu, o escritor Raimundo Neto, demorou 15 dias a morrer no Hospital de São José, um hospital bem equipado, onde o trataram com todo o afecto, mas onde já nada podiam fazer por ele. No Hospital de Arroios podia ser também instalada uma urgência para casos não muito graves, mas urgentes, como é o caso dos miúdos com braços partidos. No caso de se revelarem graves, de lá seriam encaminhados para os hospitais especializados. Como cidadão e potencial utente dos hospitais, sinto-me prejudicado com a sua venda. Em qualquer caso, os que a aconselharam foram maus economistas. Já me chegou a notícia de que os privados que o compraram o terão revendido em menos de dois anos com 100% de lucro.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2007
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