Inês Vanessa, no final da primeira aula do 10º ano, quando já estavam todas as apresentações feitas e faltava só preencher a ficha da caderneta, levantou-se num ápice de firmeza e perguntou-me: - Ponho nas observações que estou grávida? Apesar de ter um auto-conceito (talvez elevado) em que me revejo com abertura e capacidade para discutir essas questões com os jovens, vassilei por uns instantes para avançar logo com a maior "naturalidade": - Claro! E fui falar com a minha aluna, como me parece comum: quando nascia; se estava acompanhada em termos de saúde; como estava com a família. E mais não soube. As preocupações que tive ao pensar que uma jovem de 15 anos iria enfrentar cedo certas responsabilidades e privacidades acabaram por ser remetidas para ela própria e respectiva família. Tanto quanto percebi, não iria haver qualquer tipo de união com o pai da criança, o que até me pareceu bem. Interroguei-me várias vezes se estava perante um "milagre de vida", significação que alguns pretendem transferir de forma hipócrita do âmbito da Biologia para outro mais difícil de avaliar, o da Moral. Passados alguns meses, Inês Vanessa ficou em casa, doente. Quando voltou, comunicou-me que abortara. Perguntei: - E está tudo bem? - Sim. E fomos à nossa vida. Não precisei de saber mais nada: onde foi, como foi, por que foi. Preocupei-me tão só com a sua integração nas aulas. O respeito pela dignidade daquela Mulher, a minha solidariedade com todas as que vivem estas situações e o meu desejo de que elas tenham sempre a liberdade de decidir foram assim mostrados. Se Inês fosse acompanhada por um Centro de Saúde e tivesse optado por fazer um aborto eu estaria contente; tínhamos apoio para as nossas adolescentes, respeitávamos intenções várias a nível dos Direitos: os Humanos, explicitados em 1948; os Cívicos e Políticos, de 1996; e outros. Se o aborto tivesse sido clandestino, realizado na pior aflição e na maior solidão, eu ficaria angustiado a pensar no país triste que somos, onde, para além de ser difícil haver uma maternidade e uma paternidade assumidas e felizes, não há uma eficiente inculcação nos jovens da necessidade do uso de métodos contraceptivos (não basta mostrar e brincar com preservativos; é preciso aprender a importância da Vida). A Educação Sexual nas escolas, para além das aulas de "Anatomia", ou até das de Moral, passa também por programas com os Centros de Saúde (o projecto " Escolas Promotoras de Saúde" parece um bom exemplo); mas consiste, sobretudo, numa relação sem tabus entre todos os membros das comunidades educativas no triângulo alunos-pais-professores. E mesmo que os nossos jovens (e os adultos) venham a ser bem informados nas várias dimensões desta problemática, a questão da interrupção voluntária da gravidez será sempre um acontecimento pertencente ao mundo da intimidade de cada mulher que, se quiser, poderá partilhar com o companheiro. Quanto à Igreja, felizmente, não é só composta por um Papa ou por um bispo de Bragança. Somos milhões, "mais ou menos católicos", muito, pouco ou quase nada praticantes. Não somos terroristas, somos contra os enforcamentos no Iraque e desconhecemos o "sexo selvagem", a não ser que isso corresponda a uma paisagem idílica no meio de uma selva onde dois seres Humanos podem fazer amor, com a bênção de Deus, certamente. E quando a Comunidade Europeia chama a atenção para o facto de haver menos abortos nos países com legislação mais permissiva e até recomenda aos candidatos à adesão que se abstenham, "em qualquer circunstância de agir judicialmente contra mulheres" que tenham praticado Interrupção Voluntária da Gravidez, como é possível que a Assembleia da República e o Governo, em vez de modificarem a Lei (como tão bem sabem fazer noutros contextos) avancem com os gastos para o erário público que este referendo implica? E essa não é uma atitude que se insere numa democracia participativa, mas uma subserviência a sectores influentes em termos sociais (como a hierarquia da Igreja e outros de compleição económica), a qual corresponde, afinal, a uma não neutralidade do Estado, por vezes tão apregoada. Não é uma questão de esquerda ou de direita, de religião tão pouco. São os tais infernos que, no dizer de um padre amigo, são criados por nós. O outro, com maiúscula e tudo, não existe, a não ser para nos meter medo. Seja como for, Inês Vanessa parece uma jovem feliz. Participa, tem boas notas. Vê-se que "cresceu" um pouco mais do que as outras. E sei bem que o seu aborto, em quaisquer circunstâncias, não foi um acto feliz e leviano. A sua colega Sónia Alexandra do 11º, de 17 anos, engravidou também, logo depois; deixou a escola e, como era mais velha, foi viver para outra cidade; casou. Fiquei também muito feliz. E vi as fotos do bonito bebé, quando nasceu. Mas agora, após oito meses, os pais já se separaram e ninguém sabe quais serão os seus destinos. É só outro exemplo do "real", sem qualquer apologia. (Agora que a vida é um milagre difícil?) Se Sónia é mais feliz do que Inês é uma questão que só interessa a cada uma per si. Por mim, como homem, só pretendi aqui homenagear todas as mulheres e o poder e o direito de decisão que, como qualquer ser humano, têm sobre a sua intimidade. E calo-me já. Porque sobre este assunto há tantos homens a falar nos media, que desconfio que metade do meu género tem andado "grávido". E eu sem "alcançar"? Optarei pelo respeito pela vida. SIM!
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