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A vida dentro das novelas

Não sou muito apologista de discursos que arrumam programas ora na área do entretenimento, ora no campo da informação. Um noticiário pode abrir diante de nós um verdadeiro deserto do real enquanto que uma telenovela pode construir uma realidade encostada àquilo que existe e que nós (des)conhecemos. Neste último caso, a Rede Globo acumula felizes exemplos, enquanto que, entre nós, a produtora NBP tem ainda um longo caminho a percorrer.
Centremo-nos em "Páginas da Vida", a novela brasileira que passa actualmente na SIC. Num dos episódios, Helena [(há sempre uma Helena nas novelas de Manoel (sic) Carlos] recebe um postal do Quénia, enviado por um colega de curso que resolveu integrar uma missão para África, oferecendo-se como médico voluntário. A opção narrativa mais óbvia seria colocar a personagem (interpretada por Regina Duarte) sentada no sofá a ler a carta. Mas não foi isso que se fez. Manoel Carlos levou Diogo (o médico, interpretado por Marcos Paulo) até ao Quénia e é ele que lê o que escreveu, à medida que vai passando por diferentes lugares. E do que fala? Da pobreza em Nairobi, das crianças que morrem à fome, da proliferação do vírus HIV, das favelas? As imagens são impressionantes e poderiam fazer parte de uma reportagem feita em registo jornalístico. A narrativa corre em escassos minutos, mas aquilo que vemos fica para lá da sucessão de planos. Este médico haverá ainda de ir ao Burundi. Segundo informações da Rede Globo, para gravar as cenas em que Diogo aparece a tratar das crianças num campo de refugiados no Burundi, o director Jayme Monjardim e o actor Marcos Paulo ficaram aproximadamente uma semana na fronteira deste país com Ruanda e Congo, na África, contando para isso com a ajuda do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que tornou possível a ida destes brasileiros a lugares aonde poucos conseguiriam chegar. A novela explora outros sítios. Por exemplo, colocou quatro personagens em Amesterdão a fazer o programa Erasmus (de intercâmbio de estudantes) e, novamente, enveredou-se pelo caminho mais longo: gravações no exterior e sempre em lugares diferentes.
Paralelamente aos lugares, há um cuidado particular com as causas sociais. A maternidade na adolescência (há uma jovem que engravida e o namorado foge), a integração social de crianças deficientes (um dos bebés dessa rapariga tem o síndrome de Down e é rejeitado por muitas pessoas), a bulimia (uma menina é permanentemente vigiada pela mãe que sonha para ela um futuro de bailarina dentro de um corpo com medidas abaixo do tolerável, o que lhe origina distúrbios alimentares), o problema do celibato e da castidade religiosa (Levínia é uma bonita freira por quem um jovem se apaixona), o alcoolismo (Bira é um homem derrotado que não pára de beber). Há também os casos de um seropositivo quase terminal, de um arquitecto que está envolvido na construção de uma Escola de Artes, de um fotojornalista que percorre as margens sociais à procura de retratos da vida real? Eis aqui um material infindável para os pais discutirem assuntos variados com os seus filhos, para os professores promoverem acesos debates nas salas de aula, para cada um de nós pensar em determinadas realidades que estruturam a sociedade que somos.
Face a isto, as novelas portuguesas têm ainda um enorme caminho pela frente. O enredo da ficção nacional envolve personagens cujas profissões são totalmente indiferentes à história e as causas sociais são deixadas do lado de fora de qualquer guião. Por isso, temos narrativas extremamente pobres do ponto de vista da repercussão social. Neste contexto, torna-se difícil perceber as audiências das telenovelas da TVI: o que leva os telespectadores a ficarem presos ao ecrã pela noite dentro, seguindo uma história sem conteúdo?
É esta reflexão acerca dos enredos das novelas que é preciso fazer. Porque há histórias que constituem ricas páginas para entendermos o nosso quotidiano e outras que não justificam o tempo que lhes consagramos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho
Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho

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