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Futbolsofia

Filosofar através do futebol

«Futbolsofía ? filosofar a través del fútbol» (Ediciones del Laberinto, Madrid) é um livro invulgar no mundo do futebol, escrito por um filósofo sensível a todas as radiações novas mas, desta vez, com centro de gravidade no desporto-rei. O seu autor, Carlos Goñi Zubieta, é um espanhol de 43 anos, doutor em Filosofia pela Universidade de Granada (Espanha), um amante do futebol e que, sobre esta modalidade desportiva, entrou de reflectir, com um pensamento radical, ou seja, que não se ficou pela superfície e aparência dos factos e dos acontecimentos; rigoroso, quero eu dizer: crítico, que desdogmatiza e desideologiza; e sistémico, dado que não há objecto de estudo ou de análise que não seja um objecto-sistema. Trata-se de um livro de saborosa originalidade, onde se pode entabular relações com a cultura, na múltipla acepção deste termo.
O livro está organizado, como uma Liga, em 38 jornadas e, em cada uma delas (ou em cada um dos capítulos) o leitor, numa perspectiva futbolsófica, vê o futebol como deve ler-se um compêndio de filosofia e, portanto, de modo dialéctico e dialógico. De facto, como Carlos Goñi Zubieta o acentua, "toda a actividade humana tem um sentido que deve ser descoberto e interpretado pelo filósofo" (p. 16). E assim "o desporto deve aproveitar-se como uma ocasião mais para reflexão" (p. 17). E também "para entender o mundo em que vivemos e para nos entendermos melhor a nós mesmos" (p.27). A propósito, poderemos inventar o adágio: "De treinador, médico e louco todos temos um pouco". É que são tantos os argumentos pedantes, as invectivas e as críticas, que lançamos sobre os treinadores que é impossível não nos julgarmos pessoas sapientíssimas, na ciência do treino. Afinal, é ignorância e arrogância o que manifestamos, porque nem é simples a ciência do treino, nem é fácil ser treinador (pp.30/31).
Só podem jogar 14 futebolistas. Por que será então que afirmamos, sem problemas, "hoje, jogámos bem" ou "hoje, jogámos mal"? De facto, "este sentir como nosso o que acontece à nossa equipa é verdadeira afición (...). E ser aficionado é pertencer a esse eu transcendental que é o nosso clube" (p. 33). A expressão eu transcendental é de origem kantiana e o autor foi buscá-la para salientar que muitas vezes o clubismo tem, em cada um de nós, uma "função despersonalizadora" (p. 35), bem visível nos actos de violência em que deixamos completamente de ser eu, para sermos inteiramente nós! Um outro ponto evidencia o autor: "Os grandes clubes também jogam fora, ou em casa, mas já não são locais, nem visitantes. Aliás, falar agora de equipa local nada tem a ver com o seu sentido etimológico, pois que a equipa da casa converteu-se em clube e o clube em sociedade anónima. Já não há jogadores locais, que defendem a equipa da sua terra ou da sua cidade, mas empregados do futebol, cuja procedência geográfica é indiferente" (p. 38). Enfim, nem sempre a história e as tradições podem competir com as exigências prementes de ordem económica e financeira (o capitalismo não é propenso a determinados valores) e até com o conceito de "aldeia global" que nos governa.
O futebol, como motricidade humana que é, corporiza-se em movimento intencional, que visa a superação e, por isso, com inúmeras jogadas onde impera uma velocidade impaciente e ansiosa. Só que, após o jogo, há a câmara lenta, há as últimas conquistas da tecnologia, a deixarem ver o que a pressa e a ligeireza turvam, ou confundem. E o treinador e os jogadores descobrem, repousadamente e com limpidez, as "causas das causas" das suas virtualidades e das suas limitações. Por que não fazemos o mesmo, sem pedantismo, tentando penetrar no âmago da nossa consciência, com a câmara lenta da reflexão filosófica? No entanto, "não há muito se iniciou um debate sobre a possibilidade de introduzir tempos mortos, no futebol (...), para que o treinador pudesse mudar de táctica e motivar os seus jogadores (...). Mas alguns preopinantes adiantaram que assim se mataria o futebol. Com efeito, o futebol, como tudo o que existe, é tempo. "Uma vez que os segundos do cronómetro iniciaram a sua corrida frenética, nada deve deter a sua progressão" (p.51). É em movimento que me conheço, é em movimento que o futebol se recria. Deixemos os tempos mortos para os cemitérios. O futebol é vida!
Muitas vezes, nós, como os futebolistas, "deitamos bolas para fora", designadamente "quando temos que responder pelos nossos actos e não encontramos a resposta adequada; quando a liberdade nos exige responsabilidade e não previmos as consequências (...). Deitar bolas fora pode significar um acto de cobardia, embora muitas vezes possa converter-se numa acção virtuosa" (p.55). Aguardemos o que nos dizem o nosso espírito crítico, a nossa consciência moral, que nos apontam normalmente o recto caminho. Na página 63 deste livro, o seu autor discerne sobre a possibilidade da existência do "homo futebolisticus". Aristóteles propôs a definição: "o homem é um animal racional"; de Huizinga ressaltou o "homo ludens"; por que não rotular o homem hodierno de "homo futebolisticus"? Aqui, Carlos Goñi Zubieta olvidou que o futebol apaixona o homem actual, porque emergem do desporto-rei, sem esquecer outros factores de ordem biológica, psicológica e sociológica, os grandes anseios que o capitalismo apregoa e publicita, com todos os meios que a tecnologia lhe proporciona: a medida, o rendimento, o recorde, a vontade do risco e a vitória sobre o outro como a medida de todas as coisas. São jovens, ricos e famosos os futebolistas, os treinadores e os empresários de maior nomeada? (p. 73). É o futebol o fenómeno social que beneficia de maior informação e que tem ao seu redor uma legião imensa de comentadores? (p.79). É que o futebol corporiza as características do sistema capitalista, como "fim da História"(Hegel e Fukuyama), como nenhum outro espectáculo o faz, actualmente. Como a serpente, no Éden, a Eva e Adão, o capitalismo não cessa de ciciar aos ouvidos dos futebolistas que o mundo idolatra: "Sereis como deuses". E muitos deles acreditam, imediatamente...
"Temos de nos inclinar, diante desta verdade: o futebol é uma realidade indiscutível e quotidiana. Nada saber sobre ele, dificulta-nos a compreensão do mundo que estamos vivendo" (p. 93). E será possível falar do futebol, sem nomear a presença do árbitro? (p.95). Escorado na lei, é ele "a dar o apito final" e o apito inicial. Com efeito, com um apito, regulam o jogo todo. "Mas que ordenem, sem tirania; e julguem, sem deliberar; e estejam presentes, passando despercebidos" (p. 96). Não acompanho à letra a afirmação de que "os árbitros não são bons, nem maus, pois que são os jogadores, os treinadores e os espectadores, que os fazem de Primeira ou de Segunda" (p. 100). Torna-se mister esclarecer que, entre os árbitros, também há os bons, os sofríveis e os maus, mas as pressões a que estão sujeitos, pelo fanatismo do público, pelo ressentimento dos treinadores, pela hipocrisia dos jogadores, pela sofística dos órgãos da Comunicação Social ? transformam-se em condicionalismos inevitáveis, mesmo a uma arbitragem que oscila, entre o bom e o sofrível. Conforma a ideia de Ortega, na Rebelião das Massas, a ascensão das massas, como consequência do aumento demográfico, correspondeu ao seu empobrecimento ético? "Massa é todo aquele que não se avalia a si próprio (...), mas que se sente como toda a gente e não obstante não se angustia, sente-se bem, ao sentir-se idêntico aos demais" (Ortega, IV, 146). As massas, no futebol, são importantes para as receitas que alentam os cofres dos clubes. Mas, para que o futebol se aproxime da perfeição, precisa é a razão crítica que saiba separar o domínio da ciência do domínio da crença, precisa é a diversidade. Também as grandes equipas de futebol funcionam graças à diversidade (p. 114). Não basta um ataque eficiente tão-só, nem unicamente uma sólida defesa, para ganhar os jogos ? uma diversidade excelente é a primeira condição da vitória.
Richard Rorty, no seu livro Science et Solidarité (Éd. de L'Éclat, Paris) escreveu : « O mundo ocidental passou, paulatinamente, do culto de Deus ao culto da razão e das ciências. Actualmente evolui para uma fase onde já não adorará mais nada".
Carlos Goñi Zubieta fala-nos da religião do futebol. Nada tem de extraordinário que um filósofo se ocupe da religião. Desde os pré-socráticos até hoje, ou pelo revérboro do tropo, ou pelo calor da emoção, ou pela racionalidade da crítica, muitos são os filósofos que se aproximaram da religião. Foi mesmo Platão que criou a palavra "teologia", se o Werner Jaeger de La teología de los primeros filósofos griegos não se engana (cfr. A.A.V.V., Filosofía de la religión, Editorial Trotta, Madrid, p. 14). E o autor de Futbolsofía esclarece (faço a citação na língua original): "El ser humano necesita creer en algo. Hasta los más incrédulos creen que no merece la pena no creer en nada. A lo largo de la história, el hombre ha adorado a los astros, al Sol y a la Luna, a seres superiores, a ídolos de oro y a dioses antropomórficos; ha venerado a Yahvé, a Buda, a Jesucristo y a Alá; ha practicado el budismo, el taoísmo, el cristianismo, el islamismo y también el ateísmo. Se puede decir que la religión es inseparable del ser humano, quizá porque és una exigencia de nuestra condición finita, o quizá porque nos inclinamos a verlo todo more religiosus, o quizá porque el obrar humano, en la forma y en el contenido, resulta, en esencia, un modo de religión. Es decir, que todo lo que hacemos lo tendemos a realizar religiosamente: externamente, con un ritual determinado; internamente, con espíritu fervoroso" (p.115).
Carlos Goñi Zubieta não esquece o sistema ternário de Comte que dividia, em três estados, a história da humanidade: a fase teológica, que inclui o animismo, o fetichismo, bem como as religiões politeístas e monoteístas e onde se explica, portanto, o natural pelo sobrenatural; a fase metafísica, que é afinal uma fase intermédia ente a religião e a ciência e recorre a abstracções que hipostasia, como, por exemplo, as noções de alma (substância espiritual) ou de causa final (força activa, mas invisível); a fase positivista, onde a ciência resolve todos os problemas humanos. Mas Augusto Comte não combate a religião: o deus da sua religião é a ciência e os sacerdotes os cientistas. Só que não se descortinavam utopias, ucronias, profecias, na fase positivista. Tudo nele seria tradição, sem contradição. Ora, sem contradições, não há liberdade criadora. E é porque há contradições que a religião do futebol nasceu. A vida não suporta o eternamente igual. "O futebol, como expressão da nova religião, tem símbolos próprios, uma liturgia específica, dias de novenas, devoção e ocasiões solenes; proporciona uma catarse colectiva, uma força psicológica e uma felicidade indescritível; promove êxtases quase-místicos, sentimentos de fraternidade, fanatismos incontidos e vocações imparáveis. O que é inquestionável é que o futebol se vive como um verdadeiro culto" (pp. 116/117). Dir-se-á que os futebolistas (como os artistas de cinema, de televisão, de teatro e os mais publicitados praticantes doutras modalidades desportivas) são os grandes vultos de uma época pífia. Engano! "Nós apreciamos os futebolistas, porque figuram homens, num esforço constante de superação"(p. 124). De facto, é no esforço da superação, na vontade da transcendência, que os homens se tornam deuses.
O Evangelho e o Corão (dois exemplos) dirigem-se a todos os humanos, sem distinção de culturas, de raças, de classes sociais. O futebol faz outro tanto. E em festa (p. 143), dado que um golo é mesmo festa. E um domingo, sem futebol, transforma-se, para muita gente, num episódio burlesco, porque já não sabe viver sem a dialéctica tensional e criadora do desporto-rei. A religião do futebol traz consigo uma lição, no meu modesto entender: tudo, na vida, deve ser realidade e virtualidade, porque o ser é devir. Toda a lógica que negligencia as contradições da realidade é instrumento de domínio, desconhece a denúncia e a profecia. Não existe só o mesmo e o idêntico, mas também (e principalmente) o outro e o diferente. E, daí, o fim da competição hostil e o surgimento da competição-diálogo. Um jogo de futebol, como realidade relacional, diz-nos isto, precisamente: o outro existe e deve ser respeitado como outro! A filosofia (e a teologia), quase sempre substancialista e coisificante e pouco fenomenológica e relacional, tem muito a aprender com o futebol. E com o desporto em geral...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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