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Reflexões
Creio que as melhores qualidades de cada um são também os seus maiores defeitos; e as consequências disso na vida pessoal são evidentemente muito dependentes das circunstâncias, quer dizer, de aspectos aleatórios, imprevisíveis.
"Eu" constitui a realidade de que me sinto mais seguro para falar, e ao mesmo tempo menos seguro. Tendo sempre vivido na primeira pessoa, isso dá-me uma impressão (evidentemente falsa) de autoridade, de que, quem sabe mais sobre mim, sou eu.
mas, ao mesmo tempo, tendo sempre existido fechado dentro de mim, dentro do que se chama o meu "corpo" e todas as suas identificações (bilhetes e cartões de toda a sorte onde o meu nome e até foto estão espalhados, e através dos quais o sistema me monitoriza), e não podendo conhecer as múltiplas imagens que os outros captam do que faço e digo, a dúvida subsiste, permanente, sobre o que sou, quem sou.
Esta questão identitária pode pôr-se ao nível do valor, isto é, o que é que realmente valho. Para além de todas as performances sociais, dos êxitos e inêxitos, é sempre uma questão em aberto: valho em função de que (mais ou menos aleatória, situada historicamente) tabela de referência? Como é sabido, esses quadros de referência, religiosos, éticos, morais, relativizaram-se muito, pondo-se o problema de se saber se hoje há algo para além da lei pela qual nos pautamos, colectivamente.
Ora a lei, o direito, é uma coisa; e a justiça, outra. Se a justiça se mantém sempre como um ideal (embora com versões muito diferentes ao longo do tempo e do espaço, e portanto altamente subjectiva) sabemos quanto o direito está ligado ao poder, e como todo o poder, mesmo o baseado no sufrágio universal (democracia), é evidentemente um produto de um jogo de forças. Em última análise, tudo é político e tudo se resolve na acção prática, na negociação e na interacção.
Quer dizer que nada, absolutamente nada, se me impõe (à minha consciência individual) como absoluto, como imperativo moral. E, se assim é, e se essa relativização constitui inclusivamente a regra intrínseca do mercado (dessacralização do êxito e do lucro, e libertação do sentimento de remorso e de culpa a ele ligados, porque o lucro se obtém sempre contra alguém), o mundo vai entregue à sua sorte, um mundo onde novos apóstolos ganham dinheiro, e multidões, julgando realizar o seu desejo, se acarneiram todos os dias, submetendo-se no próprio momento de internalizarem a sua libertação, a sua liberdade. É a volta do conceito de alienação, a premência de novo de discutir a ideologia, etc., em moldes adaptados ao presente.
Ao objectivarem o indivíduo, criando as ciências sociais e humanas, e tornando cada um de nós também vigilante de si próprio, os poderes difusos contemporâneos tornaram cada um de nós presa de si próprio e presa de um sistema complexíssimo de regras e de codificações. Viver é hoje sobreviver contornando obstáculos, uma actividade muito dura, e cada vez mais impossível para o exército dos excluídos, que cresce diariamente por toda a terra. O apocalipse já começou, e só um cego ou um cínico pode acusar-nos de apocalípticos.
A violência irrompe, irrompe por vezes mesmo contra aqueles que mais amamos. por que nos deixamos desumanizar pela ira, e sobretudo porque a voltamos (dir-se-ia cobardemente, mas isso é um juízo digno de discussão) contra os mais fracos em relação à prevenção dessa ira, isto é, contra os que nos amam também? A partir de que limites, de que holocaustos, de que auto-sofrimento e de que sofrimento infligido aos outros, estamos dispostos a continuar a viver?
A relativização das regras, inclusivamente da moral e da ética, a reflexividade que nos deixa perceber quanto a nossa consciência é um joguete de forças incontroláveis por cada um de nós, em suma, a liquefacção do "eu", liquefaz a própria possibilidade de viver em sociedade. Tal como nas regras de trânsito, que têm de estar ajustadas ao mínimo comum (o peão ou o que usa um transporte regulados por forma a que não estejam constantemente sujeitos à morte), também nas regras sociais tem de imperar um espírito pratico de "bom senso".
O bom senso, para mim, está ligado ao conceito de tempo de reflexão e de amadurecimento. É preciso criar almofadas de tempo e de espaço para pensar e sentir, sozinho e com os outros. É preciso estar atento e informado. É preciso perceber que a defesa do indivíduo só se faz com a defesa da comunidade, que ambas tem de ir o mais possível em uníssono. Isto é difícil num mundo de circulação em que as comunidades são multiculturais, tem valores divergentes e até opostos, e tem de negociar entre si.
Também o tempo permite perdoar, fazer o luto, esquecer para voltar a restaurar e a restaurar-se. Quem pode acusar quem? Quem se arvora em emissor da verdade ou da verdadeira ética? Quem pode estabelecer um limite entre a humanidade e a desumanidade, se todos os limites parece terem sido ultrapassados, se temos a sensação de ter chegado demasiado tarde, de ter praticado actos que são irreversíveis?
Aqui, de novo a questão do bom senso. se não admitirmos a hipótese de redenção, estamos todos condenados ao inferno. A possibilidade de redenção é como o respirar: não é possível pará-los por muito tempo.
Por isso, mesmo depois do horror, haverá mais horrores; mas também suaves notícias, felizes oportunidades. isto diz o anjo da anunciação, aquele que traz a boa nova quando ela era inverosímil, inesperada, absurda. Aquilo que convencionámos chamar "arte" volta sempre a povoar de flores vivas, silvestres, os atrozes campos de batalha. E os jovens desconhecem o passado, beijam-se com o mesmo ímpeto de Adão e Eva no paraíso. Só não sabem quanto o prazer de os ver assim só se encontra mais tarde. Os modos de felicidade, felizmente, distribuem-se ao longo da vida.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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