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Prémio Nobel 2006 em Fisiologia ou Medicina a descoberta da interferência de RNA

Sob o título "O elogio das petúnias ou da imprevisibilidade dos avanços científicos", no número de Agosto/Setembro da Página, chamei a atenção para um aspecto fundamental dos grandes avanços científicos e técnicos: o facto de terem frequentemente na sua origem esforços de investigação fundamental, motivados pela curiosidade e não pela procura dirigida de aplicações práticas. As histórias passadas do desenvolvimento de vários avanços médicos de relevo, como os Raios X, a penicilina, a vacina da poliomielite e a engenharia genética, ilustram bem este ponto. E, no entanto, optei por me referir a um exemplo recente da Biologia Molecular, a descoberta da interferência de RNA, provavelmente desconhecida do público em geral, com o objectivo de sublinhar que estamos perante uma característica fundamental do processo científico, insensível à modernidade dos tempos. A felicidade desta escolha foi revelada passado pouco tempo pelo anúncio da atribuição do Prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina aos investigadores Andrew Fire e Craig Mello, pelo seu papel na descoberta da interferência de RNA. O marco de referência foi o artigo que publicaram em 1998 na revista Nature.
A brevidade pouco usual com que o prémio foi atribuído é um reflexo da relevância que a comunidade científica lhe atribui. Trata-se afinal de um mecanismo completamente novo de regulação da expressão do genoma, que ocorre quer em plantas, quer em animais e que se pensa ter evoluído como defesa contra infecções virais através do reconhecimento de um elemento raro na célula, mas frequente no mundo dos vírus ? moléculas de RNA em cadeia dupla. Estas moléculas são identificadas por um complexo de proteínas que desencadeia a sua destruição. Uma adaptação deste sistema de defesa permite à célula controlar as suas próprias moléculas de RNA, silenciando a expressão da informação genética nelas contida. Mello e Fire, trabalhando com um modelo biológico simples - o nemátode C. elegans, um verme com algumas centenas de células - demonstraram que é possível aproveitar este mecanismo celular de forma programada para "desligar" genes activos. Fruto da conservação dos processos celulares básicos dos seres vivos, marca da evolução a partir de um antepassado comum, as descobertas feitas no pequeno verme são válidas para animais mais complexos, incluindo o ser humano. Desta forma, aquilo que era considerado impossível há dez anos atrás - silenciar um qualquer gene humano de interesse - é agora prática diária em qualquer laboratório do mundo, permitindo avanços inusitados na investigação fundamental e prometendo algo não menos impressionante ao nível da investigação médica.
Parece assim justificada a atribuição célere do nobre galardão a esta descoberta. Mas então onde entram as petúnias na história? Talvez a expressão mais adequada seja "nem tudo é um mar de rosas". Nem de rosas, nem de qualquer outra planta. Na verdade, a atribuição deste Nobel ignorou por completo os trabalhos precursores sobre este fenómeno em plantas. Desnecessariamente, disseram algumas vozes, tendo em conta que o regulamento do prémio permite que ele seja partilhado por três e pelo menos um nome que se destaca entre os cientistas de plantas. Arrogância do reino animal? Lobbies institucionais? Sede da ribalta?
A história dos prémios Nobel está cheia de exemplos destes (só este ano, veja-se também o caso da Química). As especulações serão muitas e talvez até injustificadas. Mas espelham outra realidade da ciência, uma verdade à La Palisse: que é feita por alguns seres humanos, com as mesmas limitações e fraquezas de todos os outros. E, no entanto, predomina junto do cidadão uma visão irrealista do que é um cientista, que prejudica a construção, cada vez mais necessária, de um entendimento básico do que é e como se faz a ciência.
E para uma visão refrescante do que é um cientista aos olhos de uma criança, porque não visitar um interessante projecto educativo em http://ed.fnal.gov/projects/scientists/index1.html


  
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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