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A autonomia da ignorância?
Defendo a descentralização? Defendo-a, claro. Toda a minha prática pedagógica com as crianças vai nesse sentido. Transfiro o poder para o Conselho de Turma.
Defendo a autonomia? Claro: defendo a maior autonomia de trabalho possível para cada uma das crianças de uma turma. Defendo também a autonomia que nos obriga a distribuir, entre todos, uma série de responsabilidades ? e não de tarefas ? sabendo que cada responsável pode ser questionado no Conselho acerca da sua parcela na gestão colectiva da turma.
Explico às crianças que institucionalmente são os meus alunos, pelo que eu fico com uma responsabilidade não transferível: a gestão das aprendizagens.
O legislador confirma a minha competência para esta gestão das aprendizagens, estipulando que o titular da turma é responsável pela gestão integrada e transversal do currículo. Uma competência mais fácil de desenvolver por quem trabalha ou trabalhou no 1º ciclo. De facto, só no jardim-de-infância e neste ciclo a criança não está sujeita, por norma e durante anos, ao parcelamento do currículo, transformando-a em receptora de conteúdos em horas marcadas.
Num agrupamento de escolas é teoricamente possível favorecer a interacção entre quem sabe da gestão da autonomia em contexto pedagógico ? o professor com turma - e quem sabe da autonomia em contexto da gestão de um grupo de escolas ? o professor que integra um órgão executivo.
Mas, paradoxalmente, o alargamento da autonomia permite também a imposição de uma linha de trabalho mais uniforme. Burocraticamente mais uniforme. E em breve pedagogicamente mais uniforme. Abandonar a centralização macrocefálica leva, em muitas situações, a uma centralização microcefálica.
Instalam-se lógicas uniformizantes, copiadas entre agrupamentos onde o saber de quem gere não inclui o conhecimento do trabalho nos jardins de infância e no primeiro ciclo. Quem não sabe da gestão transversal do currículo obriga ao parcelamento do currículo, muitas vezes sem ouvir quem sabe da gestão transversal. Quem não sabe da avaliação descritiva, introduz um sistema de avaliação, próprio do ensino por disciplinas, sem discutir com quem sabe da avaliação descritiva. Quem não sabe da gestão do currículo orientado por projectos, em que estudo acompanhado, tecnologia de informação e comunicação, expressões, língua portuguesa e matemática podem ser instrumentos de trabalho ao serviço dos projectos, introduz uma abordagem parcelar, desviante do programa, muitas vezes porque não ouviu quem sabe por dentro como gerir este currículo. E ridiculariza a própria área de projecto, no 3º ciclo ou no secundário. Quem não leu atentamente qual é a competência atribuída ao professor titular de turma, cai na tentação de organizar várias vezes ao longo do ano umas mini-provas de aferição, onde um professor que não acompanha a turma apresenta fichas de avaliação, corrigidas de seguida por outro professor também externo à turma, obrigando o titular a malabarismos de legalidade duvidosa.
São alguns exemplos do que acontece, às vezes cumulativamente, às vezes não, em agrupamentos em vários pontos do país.
Seria útil reunir relatos de práticas e testemunhos. Testemunhos de educadores e professores, especialistas do jardim-de-infância e do primeiro ciclo, com prática em "gestão da autonomia", na sala de aula. Testemunhos de grupos de professores de disciplinas, habituados a gerir um currículo integrado, cada um a partir da sua própria disciplina, enriquecendo-se mutuamente.
Não é muito difícil abdicar da autonomia da ignorância em favor da autonomia do saber. Basta para tal que, nas escolas, a democracia transcenda o formalismo do acto de votar uma lista única e que se instale o diálogo. Existem, no país, exemplos neste sentido. Urge conhecê-los e divulgá-los. Para que a autonomia da ignorância não degenere numa autonomia da mediocridade.

  
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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