Página  >  Edições  >  N.º 162  >  Um empreendimento equívoco

Um empreendimento equívoco

Cuidado com a língua

1.?Em Dezembro de 2004, por portaria, o Ministério da Educação "adoptou", a título de experiência pedagógica, uma "Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário" (TLEBS) elaborada em 2002. Este documento foi objecto de outra portaria e de duas circulares do mesmo ministério em 2005 e de uma "revisão" em Janeiro deste ano. 2.? Apesar desta movimentada carreira oficial, só há uma semana tomei conhecimento deste documento e dos pormenores que acima ficaram registados. Mea culpa, porque, por dever de ofício, não posso nem devo ignorar este assunto. Agradeço pois às pessoas que começaram a discuti-lo na praça pública; foram elas que me alertaram para o assunto. A maioria dos argumentos que tenho visto esgrimir passam, porém, ao lado do problema central, que se resume a três perguntas: a TLEBS é útil? Os autores da TLEBS estão em condições de garantir que os termos que propõem aos professores dos ensinos básico e secundário reflectem os avanços da linguística? Cabe ao Ministério da Educação adoptar e promover terminologias científicas? A resposta é não, não e não. Vejamos porquê.
3.? Está por provar qual a utilidade de elaborar uma terminologia linguística expressamente dirigida para os professores do ensino básico e secundário. Não faltam dicionários e enciclopédias, em português, sobre o assunto, que os alegados destinatários da TLEBS podem consultar. Cito os que utilizo: "Dicionário de Didáctica das Línguas" (R. Galisson e D. Coste, 1983), "Linguagem-Enunciação"(volume 2 da enciclopédia Eunadi, 1984), "Dicionário de Linguística e Fonética" (David Crystal, 1988), "Dicionário das Ciências da Linguagem" (O. Ducrot e T.Todorov, 1991), "Dicionário de Termos Linguísticos" (Maria Francisca Xavier e Maria Helena Mateus, 1992). A própria diversidade de áreas e perspectivas que acolhem é instrutiva e educativa.
4.? Admitamos, porém, para benefício da discussão, que nenhum deles contem o que os autores da TLEBS gostariam de colocar à disposição dos professores do ensino básico e secundário. Nesse caso, nada mais natural que nos oferecessem a sua obra pelos meios normais ? todos menos os do pronto-socorro de uma portaria governamental.
5.? Passemos à segunda pergunta. Não há unidade terminológica entre os linguistas comtemporâneos, em consequência da falta de unidade teórica que existe em todos os domínios desta disciplina. "The present marketplace is thus a bazaar jammed with purveyors offering a kaleidoscopic array of theories" (Ronald W. Langacker, "Foundations of Cognitive Grammar" vol. 2, p.viii). "And of course, generative theory itself has both evolved (occasionally in the direction of reasonableness) and diversified into a unruly gaggle of subtheories" (ibidem). O diagnóstico é certeiro e, embora feito em 1991, não perdeu actualidade. Mas se assim é, que sentido tem pretender que os professores dos ensinos básico e secundário exibam em matéria de terminologia linguística uma uniformidade de critérios que os linguistas (na sua maioria professores do ensino superior) prescindem, ainda que a contragosto, em nome de valores mais altos, como os do amor à verdade e da probidade ?
6.? Resta a última e mais importante pergunta. Incumbe ao estado incentivar e apoiar a investigação científica (e a criação artística) por forma a assegurar a respectiva liberdade e autonomia, a elevação do nível cultural do país e a melhoria da qualidade de ensino. Não lhe incumbe imiscuir-se em matéria do foro científico, como é o caso em apreço.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo