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Mãe, na minha sala tem uma aluna que fala com as mãos (...) É legal, porque a gente vai aprender a falar a língua dela!

De fato, as crianças como nós, adultos, estamos aprendendo a falar com as mãos com a presença de uma aluna surda na escola(1). Seu modo de ser ? alguém que não escuta e não se comunica através da linguagem oral ? tem desafiado a escola a pensar e praticar modos outros de se relacionar e compreender a alteridade.
Tem sido instigante, provocador e um grande aprendizado a tentativa, cotidiana, de lidar com a surdez como diferença rompendo com uma concepção, ainda hegemônica, de localizar a surdez dentro dos discursos e práticas vinculadas a deficiência. As investigações, em sala de aula, têm sinalizado que as crianças precisam de ajuda, de atendimentos variados e singulares, que aprendem em tempos e por caminhos não homogêneos, independentes de serem ouvintes ou surdas.
A professora que trabalha com a aluna surda desenvolve uma ação alfabetizadora que investe na dialogicidade, na produção de textos escritos e orais, de modo que as crianças possam aprender a ler e a escrever usando, praticando e experienciando a linguagem escrita. Caroline, provocada a participar das atividades realizadas, dentro e fora da sala de aula, foi evidenciando a subordinação do currículo ao ensino da oralidade e, ao mesmo tempo, foi instigando-nos a pensar e a compreender a surdez como uma experiência visual, embora, inicialmente, se comportasse como se ouvinte fosse, pois praticamente não convivia com surdos.
Procurávamos, guiadas pela opção político-epistemológica de aprender com a diferença e não isolar e destacar os diferentes, não "falar" com Caroline isolando-a das outras crianças e, também de não achar natural que ficasse à parte do discutido, pensado e trabalhado em sala de aula. As crianças, nesta turma, são provocadas a tomar decisões e a interferir nas propostas a serem desenvolvidas pelo grupo; a dizer, escrever, desenhar, representar o que pensam e sentem; a discutir, coletivamente, os conflitos existentes; a revelar seus saberes e ainda não saberes; a ajudar os colegas e aceitar ajuda no desenvolvimento das atividades.
Mesmo iniciantes na discussão (e investigação) sobre Surdez e Educação procuramos estabelecer, com clareza, as fronteiras políticas da proposta educativa em construção ? não queremos produzir e reproduzir uma visão colonialista sobre a surdez, desenvolvendo a idéia da supremacia do ouvinte. O uso cotidiano, em sala de aula, do português ? oral e escrito ? e da Língua de Sinais, pelas crianças e adultos se insere, para nós, no que Carlos Skliar denomina de educação bilíngüe numa perspectiva crítica: a possibilidade de transformação das relações sociais, culturais e institucionais através das quais são geradas as representações e significações hegemônicas/ouvintistas sobre a surdez e sobre os surdos. Nessa perspectiva, é necessário dizer da surpresa vivenciada por Caroline com a chegada da professora surda para atuar na turma investigada. Caroline, perguntou, utilizando a Língua de Sinais, se surdo podia ser professora. Interagir com a professora surda, mais do que qualquer outra experiência vivida no cotidiano da escola foi crucial para que começasse a se perceber como surda, pois foi o encontro surdo/surdo.
Caroline começou a se narrar de modo diferente. Começou a compreender os surdos também de uma outra forma percebendo-os e, desse modo percebendo a si mesma, como sujeitos potentes e capazes. A cada dia que passa, usa e pratica com mais fluência a Língua de Sinais. Seus colegas de turma estão também aprendendo, como nos falou João Victor, a falar com as mãos, como a colega surda. Mas, estão acima de tudo, aprendendo a se relacionar com a surdez a partir da perspectiva teórica, epistemológica e política da diferença e não do ponto de vista, ainda hegemônico, da deficiência. Na luta cotidiana por uma escola e sociedade mais solidária, menos discriminatória e excludente, esse aprendizado faz diferença!

Nota:
2) Realizo, no cotidiano de uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro, uma pesquisa que, além de investir na formação da professora, investiga o processo alfabetizador experienciado por uma criança surda em uma turma de crianças ouvintes. Acompanho a mesma turma desde 2004, quando estavam na classe de alfabetização.


  
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Carmen Sanches Sampaio

Carmen Sanches Sampaio

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