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Analfabetos mas bem educados (II)

«Casa de pais, escola de filhos.»
(provérbio)

Em anterior artigo, publicado em Março nesta rubrica, iniciámos a abordagem ao processo emancipatório das mulheres, na sociedade portuguesa, e o que isso implicou no ruir de um pilar civilizacional ? a gastronomia. Desta vez, iremos centrar-nos num outro pilar, o da educação, também ele ferido de morte com o fim da ?mulher-dona-de-casa?.
A troca (irreversível) do lar, que a ocupava a tempo inteiro, pelo mundo do trabalho (remunerado) desencadeia uma dinâmica (imparável) de emancipação da mulher colocando-a, em poucos anos, no patamar da tão ambicionada igualdade. Em consequência, como o evidencia George Steiner (2003), «a identidade de género e as linhas de divisão entre os sexos esbatem-se.»
A saída (sem retorno) da esfera do trabalho doméstico (não remunerado), desencadeou, em muitos casos, um processo penoso para as mulheres mas também para os maridos e, em especial, para as suas proles. De realçar as transformações profundas (muitas não desejadas) na estrutura familiar e nas funções (básicas) que tradicionalmente lhe estavam acometidas: (i) a redução drástica no número de filhos ? média de 1,5 em 2003 ? e, consequentemente, na dimensão média das famílias ? inferior a 3 pessoas por agregado; (ii) o aumento exponencial dos divórcios: 1,4 separações legais por cada mil habitantes, ou seja, desfazem-se, por ano, 20 vezes mais casamentos do que acontecia há 30 anos atrás; no quadro das famílias com crianças a cargo, cresce, de forma significativa, a percentagem das famílias monoparentais; (iii) a transferência (tácita) da responsabilidade educativa para a escola, local onde se consomem muitas ?unidades de tempo? (por enquanto só nos dias úteis) para justificar a pretensão ministerial da chamada escola pública a tempo inteiro.
Esperava-se da escola o cumprimento (eficaz) da função de instrução. A outra, a de educação, cabia à família e era exercida, de forma constante, através de processos informais em torno do tudo e do nada do viver quotidiano. Tudo servia de pretexto para a aprendizagem e para a apropriação de princípios. Tudo era motivo de lição (sem livro nem retórica). A presença permanente, em casa, das educadoras (mães e avós) assegurava um contínuo educativo que se traduzia na transmissão de normas de conduta e na partilha de valores essenciais da civilidade, como o respeito pelos mais velhos, pelo património colectivo e pela propriedade privada. Os filhos eram acompanhados, em interacção, no seu evoluir. Não estavam sós, como hoje, entregues a si e remetidos para a companhia (nefasta) da televisão (que informa mas não educa). O pai continua ausente, mas agora mais fragilizado pois já não é sequer chamado a exercer a sua autoridade (na maioria das vezes como último recurso), quando chega a casa, ?pondo na ordem? o filho incorrecto ou desobediente, pela simples razão de que já não há quem lhe transmita o acontecido (a mãe não o pode reportar porque não assistiu, não estava lá mas no emprego). Esta complementaridade educativa, entre mãe e pai, cessou pela ausência mútua.
E até na rua, da aldeia ou do bairro (então bem mais seguros), funcionavam as redes de vigilância, supervisão e apoio, da vizinhança. O oposto dos dias de hoje, em que reina a impessoalidade, o desconhecimento mútuo, o isolamento: não se sabe quem são os moradores do nosso prédio quanto mais os que vivem no mesmo quarteirão. Cultiva-se o individualismo. Nenhum adulto se atreve a chamar a atenção ou a corrigir um comportamento reprovável de um jovem. Receia a resposta (com maus modos) de um «meta-se na sua vida!» A generalidade dos adultos demitiu-se da função de educar os outros (os mais jovens), apesar de compartilharem os mesmos espaços sociais.
Em suma, a geração dos nossos avós podia ser analfabeta mas era educada, tinha maneiras, sabia estar. Pelo contrário, as hodiernas gerações podem ter mais instrução, mais conhecimentos (escolares) mas a sua superioridade, em relação aos progenitores, termina aí. Falta-lhes tudo aquilo que a instituição escola não lhes consegue transmitir ? a educação. A escola falha nesta dimensão porque não sabe (ainda) como realizá-la, mesmo quando inclui, formalmente no currículo, a educação para a cidadania.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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