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Sacrificar a organização mais qualificada do país

Parece que o futuro já mora no actual Estatuto e em algumas importantes e singulares características das escolas e o recuo ao fordismo e ao taylorismo vem pela mão da proposta da tutela para a organização social e técnica do trabalho docente e dos docentes

Quando pensava na escola portuguesa sob o prisma dos estudos sobre o trabalho fui atingida pela constatação inesperada de que aquela organização, a par das regularidades que a aproximam de outras onde se realiza trabalho, acumula singularidades, algumas mesmo únicas (ou, pelo menos, raras), no panorama das nossas sociedades complexas.
Essas singularidades únicas ou muito raras estão curiosamente relacionadas com boa parte daquelas áreas que estão hoje sob polémica e conflito agudos entre os docentes e a tutela. É que é enquanto trabalhadores e entidade patronal que este confronto entre as duas partes se desenha. As escolas detêm uma elevadíssima concentração de habilitações académicas de topo (cada vez menos bacharelatos, licenciaturas, pós-graduações em percentagens crescentes e mesmo já doutoramentos), a grande distância até das outras organizações com trabalhadores muito qualificados (na área da saúde ou da justiça, por exemplo). Não conhecendo nenhum estudo a esse respeito, a hipótese que me parece mais provável é a de que, em Portugal, com excepção do ensino superior e de alguns organismos do governo central, são as escolas as organizações com uma maior concentração de habilitações e qualificações: o sistema de ensino não superior, pelos elevados efectivos que verifica, será, neste momento e naquele sentido, a organização, mais qualificada do país.
Uma outra singularidade de monta é que as escolas portuguesas são organizações que poderíamos designar como achatadas; isto é, as escolas verificam uma hierarquia menos vincada que a quase totalidade das outras organizações de trabalho do país, com a esmagadora maioria dos seus trabalhadores organizada em equipas, onde predominam relações sociais e técnicas tendencialmente horizontais e onde os indivíduos desfrutam de oportunidades significativas de participar e influenciar as decisões. O trabalho dos docentes, sendo de uma complexidade ímpar, escapa em larga medida a uma divisão social e técnica que se aproxime sequer daquela que caracteriza a maioria das outras actividades produtivas e de serviços em Portugal.
Quer dizer, e creio que esta constatação é decisiva, parecem ser já hoje largamente dominantes nas escolas as formas de organização de trabalho que temos vindo a ouvir serem descritas como pós-fordistas e que são apresentadas como portadoras de inovação e de futuro e como suportes das chamadas organizações aprendentes.
Mas, como compreender o que vemos acontecer perante os nossos olhos?! A proposta de estatuto, que o Governo pretende fazer passar em nome da qualidade da educação, quer mudar as escolas, a sua organização social e técnica de trabalho, em sentidos opostos àqueles que se defende caracterizar as organizações aprendentes, inovadoras, pós-fordistas: propõe-se vincar a hierarquia entre as categorias de docentes e aprofundar a divisão social e técnica de trabalho, tornando as escolas organizações mais piramidais e menos achatadas. Pretende-se tornar as escolas portuguesas organizações menos qualificadas, menos capazes de aprender, mais afastadas de modelos de funcionamento que, segundo estudos sobre o trabalho e as organizações, suportam a capacidade de desenvolvimento e inovação? Parece que o futuro já mora no actual Estatuto e em algumas importantes e singulares características das escolas e o recuo ao fordismo e ao taylorismo vem pela mão da proposta da tutela para a organização social e técnica do trabalho docente e dos docentes. Estão empenhados esses responsáveis políticos em sacrificar o potencial de desenvolvimento e inovação da organização mais qualificada do país?


  
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Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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