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Leitura e clichés: um problema de literacia

Muitos dos exercícios e jogos praticados pelo actor para desenvolver e treinar as capacidades e qualidades que afinam a sua expressividade e as suas potencialidades comunicativas consubstanciam, indirectamente, uma outra forma de olhar para o problema do desenvolvimento das literacias. Darei, hoje, o exemplo de um deles: a chamada «leitura neutra» (cuja relevância técnica foi defendida, entre outros, por Stanislavski e Peter Brook). Trata-se de ler um texto em voz alta, tentando eliminar o maior número possível de marcas subjectivas - como se o actor se transformasse, ele próprio, na gramática das palavras e frases que tem diante dos olhos. Aparentemente, trata-se de um exercício simples que, aparentemente, qualquer falante da língua seria capaz de realizar. Na realidade, é um dos mais difíceis no trabalho do actor, pelas razões que passo a explicar.
Na situação descrita (leitura em voz alta), a Escola costuma valorizar a comummente chamada «leitura expressiva», embora tal seja raramente entendido como resultado de um processo. Creio ser frequente, em situação de aula, um hábito que consiste em distribuir aos alunos um texto que eles desconheciam e pedir-lhes, no momento quase imediato ao do primeiro contacto, a tal «leitura expressiva». A pesquisa teatral demonstra bem como essa prática escolar padece de um conjunto de erros que, contrariamente ao que se pensa, impossibilita uma expressividade individual. Efectivamente, sabemos no Teatro que, sempre que um indivíduo, sem qualquer tipo de preparação, é convidado a «ler expressivamente» um texto em voz alta, pouco mais pode fazer do que recorrer a clichés (automatismos «expressivos», social e culturalmente transmitidos), deixando de parte tanto a individualidade do texto como a sua própria. Dou um exemplo básico: se uma das frases for «Sinto-me muito infeliz, porque chove a cântaros e eu não gosto de chuva.», a tendência mecânica será para concentrar a intensidade expressiva da seguinte forma: «Sinto-me muito infeliz, porque chove a cântaros e eu não gosto de chuva.» (o negrito representa graficamente o reforço prosódico). Ora, os núcleos semânticos fundadores da frase estão noutros lugares: «Sinto-me muito infeliz, porque chove a cântaros e eu não gosto de chuva.» Quando treina a leitura neutra, o actor começa por identificar esses núcleos semânticos para que qualquer escolha expressiva posterior (como a que permite reforçar uma palavra aparentemente menos importante desse ponto de vista) resulte numa opção expressiva voluntária ? e, por isso, voluntariamente produtora de um sentido. Daqui advém que a expressão deixa de ser uma pobre imitação de tiques culturais e sociais para passar a ser afirmação inteligente do encontro de duas identidades (a do actor e a do texto).
O que tem tudo isto a ver com a literacia?
Se, por um lado, o desenvolvimento das literacias implica, necessariamente, o reconhecimento das práticas sociais e dos seus códigos - e, nessa medida, uma certa diluição do «eu» num colectivo («uma acta faz-se assim», «uma notícia de jornal lê-se desta forma») ?, por outro, ele ficará incompleto se não permitir a emancipação individual relativamente a essa regulamentação da leitura, da fala e da escrita. Ou seja, se o desígnio da posse dos instrumentos culturais e sociais que possibilitam a inclusão de um dado indivíduo na «sociedade letrada» se esgotar nisso mesmo, então a aprendizagem da escrita, da leitura e da fala não será mais do que um instrumento de opressão. No caso em apreço, os clichés resultantes de práticas redutoras da «leitura expressiva» aprisionam os indivíduos àquilo que os torna menos parecidos consigo próprios, porque os despersonalizam. Daí a importância do exercício de «leitura neutra» praticado pelos actores (que a ele se dedicam): essa «neutralidade» prepara o chão para uma verdadeira expressão individual ? e a expressão individual resultante desse esforço é sempre revolucionária.


  
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Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

António Branco
Universidade do Algarve
António Branco
Universidade do Algarve

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