REVISÂO DO ESTATUTO DA CARREIRA DOCENTE
A uma primeira leitura do documento, a impressão global que assalta estranhamente o leitor é a de que está perante uma visão da realidade onde tudo é linear, simples e planificável. Quem quer que tenha da profissão docente, seja pelo exercício profissional directo, seja pelo estudo, reflexão e acompanhamento, a experiência da complexidade, da exigência ético-política, da permanente instabilidade das referências da acção, do improviso e permanente imprevisibilidade a que está sujeito o saber e as práticas profissionais dos professores e educadores, não pode esconder, no mínimo, um gesto de estremecimento, talvez de raiva, impotência e angústia, por nunca, ao longo das muitas páginas com que o legislador se ocupa da vida profissional dos educadores e professores, haver um único passo do texto que testemunhe o reconhecimento daquelas dimensões, hoje determinantes, da profissão docente. Dir-se-á que tal se ficou devendo ao carácter técnico-jurídico e administrativístico que um documento desta ordem deve cultivar. E crê-se que é justamente esta a perspectiva que o legislador gostará (ou gostaria) de imprimir à realidade, como se ela (a realidade) fosse tanto mais submissa quanto a vontade do legislador lhe é indiferente. Considera-se, obviamente, que a preocupação jurídica e a linguagem administrativa são elementos constitutivos da realidade a que se reportam e admite-se que o legislador queira ser fiel a este desígnio, isto é, a de tornar homóloga da legislação a realidade para a qual legisla. Se esse é o princípio geral de todo o legislador, no caso vertente, o que está em causa, porém, é o carácter da opção que subjaz ao desígnio que está em marcha. Limitar-me-ei a pôr em evidência três traços ? que me parecem maiores - dessa opção. Em primeiro lugar, um certo autismo discursivo que vai muito para além do que disporia o formalismo técnico-jurídico aplicável à actividade reguladora do Estado, que tem de salvaguardar, como se reconhece, a universalidade e a objectividade da sua acção. No caso em apreço, o discurso vai além dos princípios e enunciados gerais que remetam para uma plausibilidade esperável no âmbito da cultura docente, tendo em atenção a sua história, a sua identidade, a sua responsabilidade ético-profissional, e parece fixar-se e comprazer-se de forma especial naqueles domínios profissionais onde não só a conflitualidade profissional é maior, como é escasso o suporte científico-técnico, o que, a fortiori, recomendaria, no plano discursivo, o recurso à cultura comunicacional e à linguagem que a inspira. Não é esse claramente o caso, como se pode reconhecer ao longo de todo o artigo 41 da Secção II ? Avaliação do Desempenho, mas especialmente nos seus pontos 1 e 2, onde a fundamentação da avaliação do desempenho é tranquilamente confundida com controlo e adaptação aos contextos, sem que nunca se invoque o desenvolvimento do sentido crítico, a solidariedade institucional e profissional e o espírito de cooperação e de grupo. Um segundo traço que domina o discurso e o torna solipsista é a sua sujeição aos cânones do eficacismo docente. A preocupação com os resultados escolares é uma constante - recorrente ao longo do texto é o uso do termo ?resultados escolares? ? sem que assuma qualquer evidência no texto a presença de objectivos comprometidos com o desenvolvimento integral dos alunos, com a cultura da sua participação cívica, com a promoção de actividades que integrem a produção escolar numa cultura de sentido pessoal e social. Esta preocupação com o eficacismo da acção docente elege claramente o professor, enquanto entidade individual, como a peça central da produção escolar em termos de resultados, como é especialmente visível no plano da avaliação do desempenho (art. 46, nº 2), em que os primeiros indicadores a considerar são a) ? nível de assiduidade, b) ? resultados escolares dos alunos e c) ? taxas de abandono escolar. Esta cultura eficacista veiculada pelo documento em análise prolonga-se em efeitos colaterais de toda a ordem, mas o que parece destinado a exercer um grande protagonismo na futura carreira profissional dos docentes será a institucionalização da cultura dos prémios que passa a reger a ?corrida? profissional. Um terceiro e último traço corresponde à sujeição do desenvolvimento da carreira docente não apenas ao Ministério da Educação, mas também ao Ministério das Finanças, conforme determina o Artigo 28 que estabelece a determinação de competências para efeitos de ajustamento dos quadros de pessoal docente. Se esta não é uma prática nova no âmbito das políticas educativas, os termos em que o novo Estatuto se propõe administrar a carreira docente constitui uma verdadeira ?revolução institucional? cujos efeitos vão muito para além dos esperáveis sobre a ?poupança pública?. Na verdade, se o acesso aos vários patamares da carreira e, designadamente, à condição de professor titular, ficam a reger-se por quotas administrativamente fixadas, parece estar criado a partir daí um conjunto de condições político-institucionais que não só infernizarão as relações profissionais dos professores, como contribuirão para aprofundar, ainda mais, as tendências para a prática do individualismo e da concorrência no interior das escolas. Se há profissão onde devam ser fomentados os valores da esperança, da utopia e do optimismo e preservado o sentido da cooperação e da justiça, essa é a do professor, mormente nos tempos de chumbo que se avolumam. A revisão do Estatuto poderia constituir uma oportunidade de eleição para o fazer, apelando à mobilização, ao debate, ao relançamentos dos grandes desafios que o futuro nos reserva. Será isso ainda possível?
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