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Contributo para um debate necessário

REVISÃO DO ESTATUTO DA CARREIRA DOCENTE

Ensinar, sociabilizar, promover a igualdade de oportunidades, integrar, prevenir a violência e a discriminação, contribuir para o desenvolvimento económico e para a cidadania, remediar falhas dos percursos de formação anteriores, detectar situações de risco das crianças e jovens, tudo isto são mandatos que a sociedade atribuiu às escolas e que estas, com maior ou menor intencionalidade, foram assumindo. Tão grande acréscimo da missão da educação teria forçosamente que ter repercussões nas escolas enquanto organizações e no exercício da profissão docente.
Neste contexto, pode-se ser professor de diferentes maneiras e assumindo diferentes níveis de responsabilidade. Coordenadores dos directores de turma, coordenadores de departamento, directores de curso, professores tutores e responsáveis por actividades de recuperação de alunos e seus coordenadores, animadores de actividades não curriculares, orientadores de estágio são competências que cabem dentro do exercício da profissão docente e para as quais muitos não se sentem vocacionados, não estão preparados, nem têm que estar.
Diz a experiência que a qualidade do ambiente de trabalho e do serviço prestado pelas escolas depende, em grande parte, do saber, da disponibilidade, da capacidade de mobilização dos professores que exercem estes cargos. Todos os professores têm essas competências e vontade de as exercerem pelo simples facto de o serem? Podem estes cargos ser rotativos como já constatei em algumas estruturas de diferentes escolas onde trabalhei? Podem estar sujeitos a uma simples eleição entre pares, condicionada por um sem número de variáveis?
Porque a minha resposta às perguntas anteriores é não, estou de acordo com a criação de dois patamares de desenvolvimento da carreira docente preconizada na proposta de alteração do Regime Legal da Carreira do Pessoal Docente da Educação Pré-escolar e dos Ensinos Básico e Secundário do Ministério da Educação.
A existência de uma hierarquia, de diferentes níveis de responsabilidade, não é contrária à democracia desde que sejam claras as regras de escolha para os diferentes cargos de coordenação e todos eles estejam sujeitos à apresentação de compromissos por parte dos candidatos e à prestação de contas no final do mandato. Muito menos claras e democráticas são as eleições, tão frequentes nas nossas escolas, em que todos votam em todos, pelas mais diversas razões, e sem qualquer enunciado, ainda que vago, de propósitos.
A dificuldade de encontrar candidatos voluntários para os cargos de coordenação das estruturas intermédias de coordenação pedagógica é frequente nas nossas escolas. São trabalhos e responsabilidades acrescidas e uma cultura profissional em que, por tradição, parece mal querer mais responsabilidade. Distinguir essa disponibilidade, responsabilidade e necessidade de formação acrescida através de um outro patamar de desenvolvimento da carreira que corresponde a remunerações mais elevadas parece-me justo desde que o acesso a esse patamar se realize segundo regras claras, esteja sujeito a um amplo escrutínio entre pares e seja susceptível de recurso.
Aceite este princípio, passo a expor três objecções fundamentais à proposta do Ministério da Educação, sobre as quais deve incidir o debate público em curso e a reivindicação e luta dos professores e suas organizações verdadeiramente representativas.
A primeira prende-se com a desvalorização da escola enquanto organização capaz de articular competências e capacidades dos seus professores. Leia-se no ponto 2 do art.º 36º as 21 competências atribuídas a cada professor individualmente e responda, cada professor, em consciência, se é capaz de as exercer. É manifestamente excessivo. Confundem-se competências da escola, enquanto instituição de serviço público, com competências pessoais de cada um dos professores que nelas trabalham.
A segunda deriva do carácter centralista da proposta apresentada que fixa em até um terço o quadro de professores titulares de cada agrupamento ou escola (art.º 25º, ponto 2) e o Ministério da Educação arroga-se o direito de fixar, anualmente, o número de lugares a prover (art.º 39º, ponto 6). Projectos educativos, agrupamentos e escolas em territórios educativos difíceis, contratos de autonomia, para quê? O omnisciente poder central tudo sabe e determina... O número de professores titulares por agrupamento ou escola não poderia ser fixado na sequência de um processo de avaliação interna e externa que conduzisse à celebração de um contrato de autonomia tendo como base projectos educativos e a estrutura organizativa necessária à sua concretização?
A última tem a ver com o processo de progressão na carreira. 18 anos com avaliação de bom ou excelente para se poder candidatar a professor titular? Dois anos consecutivos de excelente para reduzir em um ano o período anterior? Só para quem não sabe que a vida e qualidade do trabalho da maior parte das escolas depende, assim o comprova a minha experiência, de profissionais entre os 30 e 40 anos[1]. Aplicar o que está previsto na proposta seria desperdiçar os professores na fase mais profícua da sua carreira. Mais do que tempo de serviço, deve-se valorizar, nas condições de candidatura a professor titular, perfis de desempenho e qualificações acrescidas.
Aceito que a avaliação do desempenho deve ter efeitos efectivos na progressão na carreira. Para que isso de facto aconteça, admito que o acesso aos escalões de topo, com responsabilidades, competências e qualificações acrescidas seja limitado. Tudo o resto deve ser amplamente debatido e ponderado, tendo em conta estas e outras objecções. Duvido que propostas tão formalizadas, como aquela que foi posta em debate público, sejam a melhor maneira de promover as alterações participadas e assumidas pelos professores que a educação, considerada como um serviço decisivo para um desenvolvimento equilibrado e justo, requer.


  
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Paulo Melo
Escola Secundária da Maia
Paulo Melo
Escola Secundária da Maia

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