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Na morte de ILSE LOSA

Nascida na Alemanha e desde sempre radicada no Porto, Ilse Losa morreu aos noventa e dois anos na mesma cidade tripeira em que vivera durante quase setenta anos e pôde consolidar uma obra literária que, no domínio da ficção, da crónica e do conto, da memória ou  histórias para crianças, se definiu em contornos literários muito pessoais, na distância da própria adolescência e sobretudo pela nostalgia dos lugares que foram da sua infância judia em Osnbruck ou Hannover. Por isso, em muitos dos seus livros se descobre um pessoal sentimento do mundo e da vida, não só pelas raízes e origens judaicas, mas sobretudo por ter redescoberto em Portugal a sua natural e íntima condição de escritora.
Na verdade, toda a ficção de Ilse Losa evidencia uma humanidade confessional e memorialista que nos conduz aos lugares e às pessoas de sua intimidade, a esse mundo em que viveu e melhor entendeu mais tarde pelas experiências trocadas e vividas no Porto em que morou. Porque a sua prosa vibrátil, subtil e carregada pelo fascínio de saber contar todas as histórias,  na linhagem literária  de Anna Seghers ou de Stefan Zweig, fala-nos de outros mundos em que a capacidade narrativa nos prende e  cativa no modo disponível e solto da sua arte de narrar.
Mas não é bem pela carga psicológica das personagens que toda a  ficção de Ilse Losa melhor se impõe e antes pelo sentido entusiástico e caloroso de uma fraternidade sem limites perante as situações vividas, na obsessão de fixar alguns "retratos de família" que embelezam uma prosa marcada pela extrema simplicidade da escrita que, se porventura em certas histórias nos surpreende, também sobressalta e causa admiração pelas figuras humaníssimas que sempre se descobrem, como no seu romance O Mudo em que Vivi, tão reeditado desde 1949, que remete o leitor para um mundo de opressão e tirania vivida sob o holocausto nazi, ou ainda nos contos de Caminhos sem Destino (1991), como se o aspecto confessional e lírico no recorte das personagens se prendesse ao que de mais verdadeiro a vida ensina e faz conhecer.
Por isso, seja Rose, Klein Oma, Idalina, Adelaide, Palmirinha ou mesmo Gabriela nas variadas narrativas dos Caminhos sem Destino, o que mais claramente se revela, de modo directo e incisivo, por vezes até com um imediato dramatismo, é a capacidade de absorver e dominar as subtilezas da própria língua e descobrir os caminhos quase secretos que definem o perfil das figuras que Ilse Losa sempre retrata, sem deixar de evidenciar, como um dia observara o grande Poeta José Gomes Ferreira, "o desenho justo das personagens com dois traços de lirismo psicológico e aquele toque, tão feminino e misterioso, que transforma o pormenor mais banal do dia-a-dia podre num acontecimento de sabor fantástico e poético".
Ora, dominando com extrema sagacidade os elementos da própria estrutura narrativa, Ilse Losa confirmou, por exemplo, nos contos  "O Colar Vermelho" ou "Retta, os Ciúmes da Morte", uma versatilidade literária e ficcional evidenciada em livros como O Mundo em que Vivi e Encontros no Outono (1965). E por isso. com a sua morte, fica-nos a certeza de nos legar uma obra de relevante qualidade, em que o equilíbrio narrativo entre as várias histórias ou o sentido psicológico das suas figuras femininas, na espontaneidade do que conta e faz conhecer, melhor patentear esse ritual de confraternização de velhas amigas e de histórias tão singulares. 
Assim, na releitura de O Mundo em que Vivi, o que se impõe é ainda a memória flagelada de recuperar as recordações da juventude, sem esquecer os anos de terror e morte vividos na Alemanha nazi nos terríveis anos quarenta de má memória. E por aí nos sobra esse claro sentimento de "metamorfose" ou de "transfiguração" literária na arte literária de Ilse Losa agora desaparecida  - uma escritora que desde sempre soube cativar os leitores por ter sabido manejar a nossa língua como se realmente fosse a da sua própria matriz.


  
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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