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Em que ano estamos mesmo?

Entre incontáveis absurdos, dizem os Excelentíssimos Senhores Juízes: «na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros.» (...) Quais seriam os ?alguns? castigos corporais que ?podem? estar incluídos no pacote dos correctivos aceites? Bater pode, arranhar não ? seria isso? E o que são os ?ou outros? castigos permitidos? Despir e amarrar as crianças numa coleira, como fizeram os soldados americanos aos presos iraquianos ? isso pode?

Já em espírito de Páscoa, eis que abro o jornal esta manhã e leio: ?Supremo diz que são lícitos ?correctivos? corporais dados a crianças deficientes? (Jornal ?O Público?: 12 de Abril de 2006). A reportagem informava que o Supremo Tribunal de Justiça português considerou perfeitamente normais os maus-tratos a vários menores, por parte da ?responsável? de um lar de crianças com deficiências mentais (a tal senhora era responsável por dar palmadas e bofetadas nas crianças, por trancá-las em quartos escuros e por amarrar-lhes os pés e as mãos para não perturbarem o seu ?descanso matinal?).
Atónita, paro a leitura e penso, em dúvida: ?em que ano estamos mesmo? 1806, 1906 ou 2006??
Volto a ler. Entre incontáveis absurdos, dizem os Excelentíssimos Senhores Juízes: ?na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros.?
Paro de novo, com mais dúvida do que antes. O que será que estas Excelências quiseram dizer com ?educação?? O que será que entendem por ?ser humano?? Será que a ?correcção moderada? é aquela que fere sem deixar marcas, ou é a que corrói por dentro sem aparecer por fora? Quais seriam os ?alguns? castigos corporais que ?podem? estar incluídos no pacote dos correctivos aceites? Bater pode, arranhar não ? seria isso? E o que são os ?ou outros? castigos permitidos? Despir e amarrar as crianças numa coleira, como fizeram os soldados americanos aos presos iraquianos ? isso pode? Ah, é verdade: amarrar não pode (dizia a reportagem que a tal ?responsável? foi punida por ter amarrado os pés e as mãos de uma criança; pelas outras práticas não).
Retomo a leitura: ??cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados.?
Minha primeira reacção: vou passar a vender castanhas assadas no Rossio e, quem sabe, consigo um bom preço também pelo meu diploma de Doutora em Educação. Mas, depois de respirar bem fundo e contar até mil, lembrei-me que quem fala em ?crença? no plano científico não tem fundamento científico para pôr de parte qualquer teoria que seja. Lembrei-me que estamos no Século XXI e que, no presente momento, ?as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados? são apenas e tão-somente todas elas ? o que, convenhamos, dificulta um bocado pô-las de parte.
Por fim, vem lá escrito que os Excelentíssimos Senhores Juízes consideram que se as estaladas não forem dadas, aí sim é que se poderá configurar ?negligência educacional?. E mais: que fechar crianças em quartos é um castigo normal de um ?bom pai de família?.
Fechei o jornal meio atordoada. Olhei longamente para a minha filha que estava feliz da vida a brincar à beira do meu marido e pensei:
?Não me faltava mais nada. Agora, além de tudo, tenho eu em casa um péssimo pai de família!?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Luzia Lima-Rodrigues
Centro Unisal, Brasil. Instituto Piaget, Portugal
Luzia Lima-Rodrigues
Centro Unisal, Brasil. Instituto Piaget, Portugal

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