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O Desporto como utopia da Educação

?Estas braços e estas pernas são eu! Eu é que sou meu corpo!?. O corpo é o todo que somos, é tudo quanto somos. Até «porque Deus está a mais na verdade de um corpo»?

Embora se pense que a imaginação de Pierre de Coubertin vibrava, constantemente,  como as harpas que os gregos expunham às virações da brisa, sou em crer que ele foi um racionalista e submisso ao biopoder do discurso médico do seu tempo. No seu livro Pédagogie Sportive (cuja primeira edição suíça remonta a 1919), surge uma definição de desporto, logo na primeira página: ?é o culto voluntário e habitual do exercício muscular intenso, motivado pelo desejo de progresso e não temendo ir até ao risco? E continua: ?Daqui emergem cinco noções: iniciativa perseverança, intensidade, busca de perfeição, desprezo pelo perigo eventual. Estas cinco noções são essenciais e fundamentais?. Portanto, para Pierre de Coubertin (repito) o desporto é um exercício muscular intenso. Que o mesmo é dizer: no fundador dos Jogos Olímpicos modernos, perpetuava-se o racionalismo cartesiano, donde nasceu a Educação Física, como educação do físico e... nada mais! No entanto, não é verdade que ele pretendeu fazer do desporto ?uma autêntica escola de formação moral?? (Ideario Olímpico, INEF, Madrid, 1973). Na 18ª sessão da Academia Olímpica Internacional, Mohamed Mzali, presidente do Comité Olímpico da Tunísia explicou, com meridiana clareza, o que deve entender-se por olimpismo: ?Se o olimpismo é mais conhecido, devido aos Jogos Olímpicos, aos quais Pierre de Coubertin chamava uma festa universal da juventude ? na realidade, o olimpismo não se reduz a uma grande competição periódica, pois se trata verdadeiramente de uma filosofia que persegue o desenvolvimento harmonioso do Homem e a sua perfeição?. Ora, porque a filosofia (como o assinala Lacroix) é uma reflexão sobre a totalidade da experiência vivida, quando se fala do olimpismo como filosofia, hemos de buscar as suas ideias mestras, tendo em conta a filosofia dos Jogos Olímpicos Antigos e a filosofia dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, já que ao abordar estes daremos de frente necessariamente com aqueles. De acordo com o que já escrevi, no meu livro A Prática e a Educação Física, ?poderemos adiantar que o olimpismo é um movimento universal, que encontra as suas raízes, no sentido agonístico da vida da antiguidade grega, no espírito cavaleiresco medieval, na pedagogia do inglês Thomas Arnold e no anseio de fraternidade e de paz que une, num abraço, todos os homens de boa vontade?.
No entanto, porque racionalista, Pierre de Coubertin considerava o corpo um mero instrumento do espírito. No nosso país, no I Congresso da União Nacional (1934), considerou-se, como objectivo último da educação física, tornar ?o corpo o digno instrumento de uma vontade esclarecida?.  A filosofia fenomenológica, iniciada por Husserl e desenvolvida por Merleau-Ponty, separou o corpo-objecto do corpo-sujeito. Na esteira da fenomenologia, o escritor (notável escritor!) Vergílio Ferreira adianta, convictamente, no seu livro Estrela Polar: ?Estes braços e estas pernas são eu! Eu é que sou meu corpo!?. O corpo é o todo que somos, é tudo quanto somos. Até ?porque Deus está a mais na verdade de um corpo? (Alegria Breve). A ciência da motricidade humana, onde se integram o desporto, a dança, a ergonomia e a reabilitação psicomotora, também procurou seguir a escola fenomenológica, ao definir a motricidade como o ?corpo em acto, visando a transcendência, ou a superação? e dando à transcendência um significado social e político. De facto, o dualismo corpo-mente é o reflexo do dualismo senhor-servo. Também, na sociedade injusta, o servo é o instrumento dos caprichos do senhor. Por que será que o desporto de alta competição é tão acarinhado, em todas as ditaduras (e incluo aqui a ditadura de mercado capitalista)? Precisamente porque é nele que o corpo-instrumento se torna mais visível e os espectadores, adormecidos pelos feitos dos atletas super-dotados e super-treinados, mais acriticamente aceitam os desígnios de quem tem o Poder. O corpo-objecto diz-nos, porque ?eu sou meu corpo?, que as pessoas ainda não passaram de objecto a sujeito. Havemos de ter uma visão totalizante (e não totalitária) e complexa do Homem, da Vida, da Sociedade e da História. Só então é possível descortinar que nem o próprio desporto é neutral,  politicamente falando. Pierre de Coubertin é uma figura respeitável, mas é preciso, partindo da sua obra, ir para além dele e afirmar, sem receio, que o Desporto, por si só, não transforma, nem se transforma. O Desporto só poderá transformar-se em utopia da Educação se assumir uma postura política. O Desporto cria espaços de liberdade, designadamente no espaço educativo, que permitem ir para além do físico e atingir o que há de mais especificamente antropológico e político. Preparar uma nova geração para um mundo novo precisa de um Desporto que faça da sua prática uma prática democrática radical. De facto, há nele virtualidades para tanto, mormente para ajudar à criação de uma realidade social alternativa. Por ele, se pode anunciar o fim do ?fim da História?...
Mas que não se esqueça o desenvolvimento que o Desporto alcançou, na Alemanha, no tempo de Hitler. Repito: é que o Desporto, por si só, não transforma, nem se transforma ? não poderá ser uma utopia da Educação.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 155
Ano 15, Abril 2006

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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