A olhar a fachada do Hotel Puerta America, em Madrid, a Liberdade. You are welcome to Puerta America. Negligentemente deixo cair todos os meus apontamentos poéticos, incluindo um, de Blaise Cendrars, sobre a Páscoa em Nova Iorque, e fico a olhar para cima, como quem olha para uma catedral gótica. Picharam a Liberdade, de Paul Eluard, na frontaria de um hotel de cinco estrelas e de muitas mais ?stars? da arquitectura e das artes plásticas. Quem diria. Terá esta Puerta um telhado e um tecto que deixe trespassar uma gota de chuva? Escrevo nas costas de um não muito velho poemário da Assírio & Alvim, que data do ano 2000, e pergunto-me, ainda com Puerta América no olhar, há quanto tempo não páro um instante para ler poesia ? ?E de súbito neste penoso lugar nenhum, de súbito surge // o sítio invisível onde a pura escassez // incompreensivelmente se transforma ? dá o salto // para esse excesso vazio. // Onde sem números // se abre a conta de muitas parcelas ?. Rilke, Rainer Maria, como seria nomeado se os poemários se travestissem de páginas amarelas, como uma frontaria de um hotel de luxo. Luxo? Luxo é a poesia, ao fim de 28 anos de prosa e de pena maior , mesmo quando recuperada em suporte nobre e luminoso, a fazer de papel de parede impermeável na fachada de um hotel de cinco estrelas. Eluard está a rir às gargalhadas. A sua Liberdade encarece a noite, continuando a ser uma promessa e uma tentação. De súbito a noite fica mais fria. Os companheiros desta aventura continuaram a descer a avenida sem reparar que eu tinha ficado, especado, a ler poesia na noite de Madrid. E o porteiro da Puerta América passou a ver-me com outros olhos e nada interessado em saber há quanto tempo não páro um instante para ler poesia. A Liberdade na fachada não garante uma tertúlia poética na recepção. Ou será que aquele senhor que leva os ?vitons? do cliente que acabou de chegar é um heterónimo desconhecido das melhores antologias poéticas de Madrid e de toda a Península?
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