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"A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua"

A caricatura do profeta Maomé lançou um enorme debate. De repente, descobrimos dois mundos/duas civilizações que se olham sem se ver, num confronto de valores e crenças. Assistimos ao radicalizar de posições, num conflito insuperável, cuja natureza trágica a humanidade conhece desde os gregos.
Para que a questão das múltiplas intolerâncias (religiosas, políticas, culturais, sociais) não se situe apenas na espuma dos dias e não se esgote nas imagens da televisão, importaria colocá-la ao nível da educação para os valores da paz, do diálogo e da tolerância.
Não necessitamos de grandes filosofias ou tratados jurídicos, basta agir com bom senso e sabedoria prática, percebendo que: ?A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos?(M. Gandhi).
Ao tomar consciência das nossas limitações e da impossibilidade de chegar a uma verdade total e única, ficamos disponíveis para nos centrarmos na construção de plataformas de diálogo, de aproximação e de convivência pacíficas, na diferença, com tudo o que isto implica de solicitude, escuta, cuidado, reciprocidade e respeito pelo outro. 
À luz destes valores, não podemos deixar de considerar particularmente preocupantes alguns aspectos associados à publicação das caricaturas:
? A reacção aos efeitos em vez de acção sobre as causas. A sociedade ocidental não se pode pôr em questão apenas quando ondas de choque violentas mostram a dimensão dos problemas. Tem de estar em permanente questionamento sobre as dificuldades que nos impedem de avançar e de caminhar juntos de forma dialogante e concertada.
? A instrumentalização religiosa. Mais que saber se é ofensivo importa perceber por que razão utilizam uns e outros a religião com fins políticos. O jornal publica com a intenção deliberada de criar um tumulto no mundo árabe, e estes aproveitam a melhor altura ? a vitória do Hamas e a situação no Irão - para incendiarem as comunidades islâmicas contra o ocidente.
A separação entre a Igreja e o Estado é, tal como a liberdade de expressão, um valor da democracia, defensável com os mesmos argumentos. Inquestionável, portanto.
- A abusiva generalização. A bomba na cabeça do profeta indicia que todos os que professam o Islão são terroristas. Ora, não é justo dizer que ?todos são?, embora seja verdade que alguns são. O fanatismo, o terrorismo, a violência, sejam praticados por quem for, e contra quem for, são absolutamente inaceitáveis.
Também, entre nós, há generalizações abusivas, embora não do mesmo género. Por exemplo, no caso dos ciganos, há quem acuse: - ?são ladrões, não querem trabalhar, traficam droga?. Será que todos são? Muitos, não são. E todos os que roubam e traficam pertencem a esta minoria? Também, não. Não há comunidade sem problemas de droga, violência, maltrato a mulheres, etc. Não existem grupos humanos perfeitos, nem imunes, somos todos muito mais parecidos do que imaginamos. Como seria útil se nos conhecêssemos melhor!
O integrismo é um perigo real mesmo fora dos países árabes. Esta semana, na fila da caixa de um supermercado, encontrei uma mulher árabe que, para além da túnica e do lenço, trazia um pano negro a tapar-lhe a cara ? imagem nova, por aqui. Falava continuamente ao telemóvel, umas vezes em árabe outras em português ? dependendo dos interlocutores, suponho. Parecia ser uma pessoa integrada socialmente, vivendo como eu e tantos outros, num bairro pacato de uma grande cidade. Talvez já me tenha cruzado com ela, lhe reconheça o rosto, se fosse o caso de o poder ver. Mas nesse dia não vi e tive pena.
Penso: o que faz com que alguém se vista assim, aqui, numa semana de manifestações tão violentas, em que embaixadas ocidentais foram destruídas, bandeiras queimadas, etc., quando o discurso de muitos se situa no limite da xenofobia? Seria, até, compreensível, por uma questão de segurança, que os árabes que vivem no ocidente fizessem tudo para se tornarem invisíveis, pois nenhuma sociedade está a salvo de extremistas.
Ao contrário, alguns fazem-se notar. Talvez esta mulher precise, por motivos que nem ela mesma saiba explicar, de levar ao limite a sua identificação exterior com a cultura islâmica. Mas com que intuito? Para provocar? Penso que não é o caso. Talvez por um profundo sentimento de pertença, que vai muito para além da religião, como se uma força estranha a impelisse a dizer: ?estou aqui, sou islâmica, não queimo bandeiras, mas sinto-me?.
E eu admito que sim. Talvez precisássemos ambas de conhecer e compreender melhor muitas coisas.


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Maria Rosa Afonso
Professora
Maria Rosa Afonso
Professora

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