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O marketing do Amor

Vinha pensativo o miúdo. Passara pelo quiosque sem pedir gomas. Na padaria dissera não ao lanche prensado que a mãe carinhosamente lhe oferecera, contrariando as ordens restritivas da pediatra. Obra difícil convencer a progenitora de que os miúdos de sete anos normalmente não pesam 49 quilos. Mas o facto é que o miúdo não reagia aos estímulos habituais e Alice, mesmo sem perceber de pedopsicologia, estava a achar alarmante tal apatia. ?Aconteceu alguma coisa na escola?? Sem responder... Miguel torceu os lábios. Olhou a mãe. Expressão de quem tem dúvidas e ainda não decidiu se as quer mesmo esclarecer. ?A Carina Ferreira disse que gostava de mim por amor!?, confessou o miúdo meio acanhado. Apanhada de surpresa, a mãe não conseguiu evitar o riso.
Comemorava-se o tão publicitado ?Dia dos Namorados? e, mesmo sem perceber nada de marketing, ocorreu a Alice que tantos anúncios na televisão ao ?amor? e à ?paixão? poderiam estar a ter algum efeito nos miúdos. ?E tu o que lhe respondeste??, quis saber a mãe. ?Não lhe liguei nenhuma!?, respondeu Miguel com a prontidão. Um pouco à espera que a mãe lhe achasse imensa piada. Inesperadamente, para o miúdo, Alice ficara bastante séria.
Sete anos e o seu pequeno parecia agir como um adulto. Talvez imitando o próprio pai que nunca dera muita atenção a demonstrações de afecto. Ou pior... Ouvira certa vez um psicólogo falar na televisão sobre a importância da Educação Emocional. Teria chegado a altura do filho aprender essa matéria? Foram pensamentos que Alice não conseguiu evitar. Mergulhada neles deixara durante uns minutos o filho sem resposta. Quando submergiu ficou curiosa quanto à reacção da miúda: ?E o que fez a Carina?? Miguel tirou os olhos do chão e voltou a fitar a mãe com um sorrisinho sádico. ?É tola, acho que foi chorar para a casa-de-banho das meninas...?
A miúda sentira-se rejeitada, pensou Alice, sem nada perceber de pedopsicologia, ao ouvir o comentário do filho. A casa-de-banho várias vezes lhe servia de refúgio a quando as discussões com o marido. Fechava a porta e chorava na comodidade de não ser interrompida e de poder, depois do choro, lavar a cara e retocar a maquilhagem. Um truque para disfarçar a tristeza. Pobre Carina. Tão pequena para sofrer do mesmo mal de uma adulta.
?Devias ter dito à Carina que também gostavas dela...? Respondeu suspirando Alice sem se dar conta do espanto que causara no miúdo. ?Oh mãe, ela é uma chata, anda sempre atrás de mim!? Pois. O mal das mulheres. Sempre atrás dos homens até eles se fartarem. Que pensaria a mãe da Carina de tudo aquilo? Naquele momento era provável que a miúda se estivesse a queixar do desprezo do seu filho. Talvez a mãe lhe dissesse, mesmo não percebendo nada de pedopsicologia, não corras tanto atrás dele que os homens não gostam de ser sufocados. Ou então, podia estar a tentar desdramatizar os sentimentos da filha: não há outro miúdo giro lá na turma?
Bom, mas mais bonito que o seu Miguel, dificilmente encontraria. De toda a maneira o melhor seria mesmo que Carina pusesse de lado o coração e se concentrasse mais nas contas e na leitura. Esse seria, de certeza, o conselho de sua mãe. Quanto ao seu... Alice quisera dizer mais qualquer coisa ao filho, em jeito de conclusão do assunto, mas não lhe ocorreu nada. O miúdo arrastava o passo pelo passeio. Acusava o peso da mochila. O cansaço da natação. E a cabeça de Alice só antecipava as dificuldades que teria para convencer Miguel a fazer os trabalhos da escola ainda antes do jantar. Pegou na mochila do miúdo. Meteu-a ao ombro juntamente com a carteira. Arrumou os sacos das compras numa só mão e deu a outra ao filho para o guindar o resto do caminho.
As montras das lojas estavam repletas de corações. No tempo em que Alice namorava não se ouvia falar em São Valentim. Mas a moda tinha chegado à escola onde surgira o hábito de por a criançada a fazer corações, os meninos para oferecer às mães, as meninas aos pais. Miguel também trazia um coração para Alice, na mochila. Mas ficara esquecido entre as folhas de um caderno e só passada a data fora entregue. O pai de Carina recebera o seu coração no dia certo, o mesmo em que Miguel destroçara o dela.


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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