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"Os cartoons dinamarqueses e a escola inclusiva"

O assunto é bem conhecido: abre noticiários televisivos e tem andado em caixa alta nos jornais. Para além da apreciação sobre os meios que cada uma das partes está a usar para defender a sua ideia, o que parece mais estimulante é a discussão sobre os valores que estão subjacentes a esta polémica. É minha convicção que esta discussão tem implicações não negligenciáveis na escola - e na nossa escola em Portugal  - e é a isso que me vou referir.
Talvez começássemos por resumir as posições extremas desde debate. De um lado encontram-se os defensores da ?liberdade de expressão? ocidental. Assumem que esta liberdade é uma imprescindível conquista do viver político e (ainda que por vezes lamentando a forma como foi feita?) aprovam que os cartoons tenham sido publicados e republicam-nos como parte de um combate pela liberdade de expressão que estaria ameaçada. Alguns matizes desta discussão não deixam de insinuar que os árabes vivem sob sistemas políticos que, em resumo, são inferiores à ?nossa democracia?. Assim, a veemente resposta que estão a dar é uma reacção digamos reaccionária e portanto de qualidade inferior. Uma prova que os valores ocidentais seriam superiores é que no Ocidente se podem fazer e publicar caricaturas de Deus, de Jesus e dos profetas sem que nada de grave se passe (só umas escaramuças?). Do outro lado, encontramos posições que acham inaceitável que se tenha desrespeitado não só a religião mas a matriz dos Estados islâmicos. Na verdade, muitos estados não são só islâmicos de religião mas são ?estados islâmicos? isto é, Estados em que a religião influencia directamente a legislação, a governação, a justiça, etc. Afirmam que não se pode insultar as suas crenças essenciais e sagradas e a sua organização social e, lá pelo Ocidente não ter convicções (ou ser muito difícil encontrar um consenso sobre elas) isso não significa que elas tenham deixado de existir. Se o Ocidente se tornou descrente e cínico sobre as crenças isso não lhe dá ética para desrespeitar os que crêem. São estes, em síntese, os argumentos dos campos em confronto.
As implicações desta polémica para a educação são evidentes. Quando se defende que a escola deve levar em conta a cultura, os valores e práticas dos alunos e não se apresentar como única e decisiva detentora do poder e da ?verdade?, estamos à procura de uma posição de equilíbrio entre posições que, extremadas, teriam argumentos semelhantes aos da polémica dos cartoons (a escola comportar-se-ia como um estado islâmico). Uma das posições que procuram encontrar um equilíbrio entre estas posições opostas é a metáfora do mundo globalizado, não como um conjunto de clubes exclusivos, mas como um bazar, metáfora esta proposta por Clifford Geertz (cf:  Stoer,S., Magalhães, A. (2001) ?A incomensurabilidade da diferença e o anti-anti-etnocentrismo? in: David Rodrigues (org.) ?Educação e Diferença?, Porto Editora. Porto).  O mundo globalizado está na opinião de Geertz a converter-se num bazar, visto como um lugar que acolhe e valoriza a diferença e a diversidade e em que as culturas são valorizadas em função da sua igualdade e sem qualquer ambição hegemónica ou de superioridade.
Em termos da Educação Inclusiva, a ideia de bazar tem, ao nível do discurso, muitos apoiantes: ?todos iguais, todos diferentes?, ?ser diferente é que é bom? ouvimos dizer a cada passo. O discurso de professores e de responsáveis educacionais faz crer que a vida na escola, os valores de convivência e o conhecimento são fruto da diversidade e da negociação que se pode encontrar num bazar árabe. Mas? (o problema são os mas?) as práticas são muito diferentes. Este bazar ideal é rapidamente confrontado com problemas de uma ordem superior: o currículo, os objectivos mínimos, as formas conhecidas de saber e de aprender. Em suma, e continuando a usar a metáfora do bazar, não basta saber o que lá se vende, o que se troca, o que se negoceia e o que se diz: em breve alguém nos lembrará que este bazar se faz num determinado território, sujeito a uma certa legislação e que por isso haverá práticas que não se podem desenvolver nele, que há produtos que não se podem comercializar, que há coisas que não se devem dizer, etc.  O bazar, afinal, é só livre para o olhar de um turista deslumbrado mas já não o é para quem lá faz a sua vida.
A ?bondade? da metáfora do bazar é semelhante à da defesa da Educação Inclusiva ao nível dos princípios. E se for só ao nível dos princípios é só uma bondade condescendente. Não é possível discutir os cartoons dinamarqueses ou a Educação Inclusiva sem se partir de um quadro de poder: quem o tem, como o exerce e sobretudo, qual é o trajecto, a mediação e a negociação que é preciso haver para passar de um etnocentrismo arrogante para uma posição de respeito pelas diferenças. 
Esta mudança não poderá, assim, ser feita sem colocar a questão do poder, ?fazendo de conta? que ele não existe ou até fingindo que ele está do nosso lado. Não esquecer: para montar um bazar é preciso falar com a Junta de Freguesia?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva
David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva

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