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Pessoa já não mora só ali!

...parece que só os sindicatos se preocupam e reconhecem os docentes enquanto classe profissional (...) Os ministros passam, mas os professores ficam. O que vale é que as escolas sempre sobreviveram, na realidade, pelo trabalho dos professores. Não de todos, é certo. Mas quase?

Cátia Esmeraldina levantou-se agora mesmo da mesa de trabalho. O toque soou há pouco; é, ainda, das últimas a sair, calmamente; boa aluna, chegou ao 12º ano com uma média óptima. Quer ir para Jornalismo, mas, perspicaz como é, tem vindo a aperceber-se de que, mesmo que venha a tirar um curso com boa média, pode não vir a obter nada daquilo por que investiu, com a família, toda a sua vida. Se os experientes já vão sendo despedidos, que lugares haverá para os novos? Chega-se junto de mim, no seu ar gaiato, agarrada à cinta do colega-namorado que tem o dobro da sua altura e diz, convictamente: ?Professor, cada vez gosto menos da escola! No 12º, com a conversa dos exames, temos sempre deveres para casa! E direitos? Ninguém nos marca direitos de casa??
A memória reactiva-se-me, incontrolavelmente: imagens de Cátia ao longo do 3º Ciclo, cheia de vida, a carregar livros e alegria para a biblioteca de turma; textos seus brotando criatividade; entrevistas a pessoas na rua; dramatizações; clube de teatro; sonhos esvoaçando para além das grades da escola. Agora? no 12º ano -caso nunca visto!? quase toda a turma, com um número razoável de alunos bons e médios e até ?bem comportados?, vai chegando devagar, arrastando-se até ao seu lugar das mesas em U; alongam imenso o tempo (como no 7º ano) a preparar os cadernos, se os trazem, e as canetas (usam ainda vaquinhas e ursinhos como estojos?); conversam imenso uns com os outros e por fim lá se predispõem a interagir com o professor, embora qualquer coisa os possa fazer dispersar; quase todas as estratégias dos óptimos pedagogos que tivemos parecem não resultar. Alguns aprendem cada vez menos e não se preocupam nem com as negativas, nem com os exames.
O tempo e o espaço desta gente são outros. Embora Cátia Esmeraldina vá com a mãe às quartas-feiras vender para a feira dos Carvalhos, tem o seu telemóvel de última geração, prenda de Natal. E, mesmo com o namorado ali ao seu lado e sendo uma óptima aluna, não deixa de receber ou de enviar a sua mensagenzinha sem o professor ver, imaginam ela e os outros. De facto, Fernando Pessoa já não mora só  ali. Saltita de uma sala de aula para outra, de escola em escola, é menino para chegar a França ou ao Japão e os heterónimos chegariam à Lua se o roaming não fosse tão caro! Aquele espaço de intimidade, onde descobríamos o poema e relíamos e reinterpretávamos, já não é rectangular como dantes: é redondo! É orbícola e profusamente esférico e até cada vez mais inesperadamente obeso! Os poetas misturam-se com pizzas e hambúrgueres, os aromas entram pela sala de aula e a poesia encontra-se agora também (como sempre?) noutras dimensões. Álvaro de Campos já não consente ser possuído pelas máquinas, mas deixa-se fruir em filas intermináveis de carros à volta dos centros comerciais.
Um mundo novo bate à porta das Escolas. Entra sem ser convidado, instala-se na melhor poltrona e os docentes, estupefactos, tentam reagir. Como?! Não é assim que se entra na sala de aula! Há tanta ?matéria para despejar em cima dos alunos? e nada disso parece fazer sentido. Qualquer motor de busca na Net encontra muito mais acumulação de saberes do que a que um professor pode ter. E a essas ?competências? chegam os alunos mais rapidamente. Mas há que não ficar acomodado, resignado. O papel dos professores continua a ser importantíssimo na consolidação das competências básicas, na filtragem das competências adquiridas e a alcançar, na sua reorganização permanente. A função dos professores evoluiu, mas continua a ser um dos alicerces das sociedades; as transformações do mundo, operadas por indivíduos conscientes e activos, só serão possíveis se as escolas forem lugares de comunhão, de compreensão, de inovação.
Contudo parece que só os sindicatos se preocupam e reconhecem os docentes enquanto classe profissional. Numa carta de resposta recentemente enviada a uma colega pelo Ministério da Educação pode ler-se: ?As medidas tomadas pelo Ministério da Educação não têm como destinatários ou como preocupação os docentes. A actuação do ME é pautada pela necessidade de proporcionar aos alunos as melhores aprendizagens escolares.? (sic). Sim, senhora Ministra! Bela conversa esta do deixai vir a mim as criancinhas!... Como se não devesse ser sempre esse o interesse primeiro, como se os professores não dependessem dessa tutela ou não fossem eles próprios pais, avós, cidadãos eleitores deste país?
Os ministros passam, mas os professores ficam. O que vale é que as escolas sempre sobreviveram, na realidade, pelo trabalho dos professores. Não de todos, é certo. Mas quase? E olhe que já houve MINISTROS que sabiam isso muito bem?


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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