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Histórias de quem não sabe ler nem escrever

Analfabetismo

?Se pudesse pegar num papel e escrever...?

A memória foi e é a sua arma contra o analfabetismo. Mas a idade tornou-a traiçoeira. É nessas alturas que sente a falta de não poder rabiscar um apontamento. ?No programa da manhã da Fátima Lopes, na SIC... está lá um médico a dar conselhos e eu às vezes ouço, mas depois quero dizê-los a alguém e já não me lembro...?, desabafa Florinda Martins, 65 anos. ?Se pudesse pegar num papel e escrever...?
Mais que um empecilho, ser analfabeta é agora tão só uma ?tristeza?. ?Passam aqueles filmes cómicos americanos, que eu até gosto de ver, mas não consigo ler as legendas... às vezes leio uma letra e aquilo desaparece...?, diz Florinda Martins com alguma graça. Sem televisão com dobragens em português, atira: ?Só me interessam as telenovelas!?
Chegou a completar a 1ª classe, mas num tempo em que a escola não era a prioridade das famílias, pouco ou nada aprendeu. Apenas as manhãs eram passadas entre os cadernos. Durante as tardes trabalhava como aprendiza de alfaiate a apartar os restos de tecidos que sobravam no chão depois da ?obra? estar feita. ?Era uma espécie de reciclagem?, compara. Separavam-se os retalhos de fazenda, entretela, tafetá e forros. Estes ?desperdícios? eram depois vendidos a diferentes preços aos farrapeiros.
Com as tardes ocupadas pelo trabalho, e apenas 8 anos de idade, ?fugia à escola muitas manhãs para brincar?, recorda. Do trabalho não podia fugir tão facilmente. Ao fim do dia os 50 tostões [2,5 cêntimos] que recebia de pagamento pela tarde de serviço ajudavam já nas despesas da casa.
Com as escapadelas e a necessidade de ?ganhar mais algum dinheiro?, Florinda Martins começou a trabalhar também durante as manhãs para ganhar 60 tostões [3 cêntimos]. A frequentar a 2ª classe ainda acedeu ao empenho da professora para que à noite fosse a sua casa aprender mais algumas coisas. Entre cópias e ditados nocturnos e o trabalho, a jovem ressentia-se. O cansaço venceu. ?Um dia cheguei a casa e disse à minha mãe que não ia estudar mais porque vinha saturada do trabalho, ela não se opôs.? E assim deixou a escola aos 10 anos, sem acabar a 2ª classe.
?Enquanto aprendiza de alfaiate nunca me fez falta ler e escrever?, confessa Florinda Martins. Sentiria falta de saber algumas frases mais tarde, aos 14 anos, quando deixara o emprego perto do sítio onde morava, na cidade de Gaia, para ir trabalhar para o Porto. Tinha de entregar a ?obra? na casa dos clientes e não sabia ler o nome das ruas. A estratégia adoptada era a mais simples. De papel na mão com a direcção escrita pedia indicações a quem passasse. Ao fim de algum tempo, a dificuldade foi ultrapassada. Apesar de não saber ler o nome das ruas, passou a conhecer-lhes bem os contornos.
No mundo dos alfaiates, modistas e costura, ser analfabeta não impediu Florinda de trabalhar. Cozeu casacos de couro, trabalhou num atelier de vestidos de noiva. Os problemas começaram quando esses empregos foram submergidos pelos ?pronto a vestir? e Florinda Martins quis arranjar um emprego melhor. Tentou empregar-se numa fábrica de fios. Mas por não saber ler viu-se impedida de conseguir um posto como operadora de máquinas. ?Tive de ir para as limpezas?, diz com algum desalento.
Foi como empregada de limpeza em casas de particulares que trabalhou até à reforma. Nunca pensou em voltar à escola. Uma vez a Junta de Freguesia enviou-lhe uma carta para saber se queria voltar à escola. ?Mas com os filhos, o marido e o trabalho nem sequer lhes respondi?, admite. Agora que a vida profissional lhe deu descanso lamenta não se puder ?entreter? a ler uma revista ou um jornal. ?Ás vezes passo numa papelaria, vejo as pessoas todas a olharem para as revistas nas montras e tenho pena de não parar também!?


  
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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