Quem diariamente lida com os mais novos já se apercebeu, certamente, da ?morangomania? que invadiu os seus quotidianos. Refiro-me à telenovela ?Morangos com Açúcar?, em exibição na TVI, que tem conquistado a atenção de crianças e jovens, revelando-se um verdadeiro sucesso de audiências. Dirigido primordialmente a um público juvenil, o programa tem, na realidade, cativado o interesse de públicos de todos os segmentos etários, desde a idade pré-escolar até à idade juvenil, não sendo também de desprezar a adesão por parte do público adulto. A abordagem, de forma superficial e trivial, de conteúdos ligados principalmente às relações de amizade e de namoro bem como à sexualidade e à droga, tem gerado alguma preocupação entre os adultos, nomeadamente entre pais, professores e educadores. Perante esta situação, e atendendo aos elevados níveis de audiência alcançados por este programa televisivo, considerou-se fundamental descobrir o que motiva as crianças a verem e a gostarem de ver esta telenovela; conhecer as suas percepções acerca da mesma; saber como usam, no dia-a-dia familiar e escolar, bem como nas relações e nas brincadeiras entre pares, a informação que recebem; saber, ainda, com quem vêem o programa e se têm, ou não, oportunidade de falar com os adultos sobre o mesmo. Ou seja, quisemos saber o que está por detrás dos índices de audiência revelados pela audimetria e que apenas nos revelam o 'quanto' mas nada nos dizem sobre o 'porquê' e o 'como'. Para responder a estes objectivos, decidiu-se, no âmbito da disciplina de Educação para a Comunicação Social leccionada nas Licenciaturas em Educação de Infância e Ensino Básico no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, desenvolver um estudo com crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos de idade. A pesquisa baseou-se, numa primeira fase, na aplicação de um questionário a crianças (N= 429) a frequentar escolas do 1º ciclo do concelho de Braga. Posteriormente, procedeu-se à realização de entrevistas semi-estruturadas (N= 83). Foi também solicitado a todos os participantes a realização de um desenho e a redacção de um texto livre sobre o programa. Embora a análise dos dados esteja ainda numa fase inicial, é já possível verificar que as crianças inquiridas vêem diariamente a telenovela, referindo gostar muito de ver. Os dados mostram-nos, também, que na grande maioria dos casos as crianças vêem o programa sozinhas e sem qualquer acompanhamento. São também raras as oportunidades, proporcionadas pelos adultos, para elas falarem sobre a telenovela, partilharem as suas emoções, as suas dúvidas ou o que mais e menos gostam de ver. A análise das entrevistas mostra que as crianças estabelecem analogias entre a própria vida quotidiana e a das personagens e entre as situações apresentadas pela ficção e as da vida real. Elas utilizam o que vêem para exemplificar e ilustrar o que pensam e observam acerca da vida de todos os dias. No que diz respeito à escola, por exemplo, elas organizam um discurso sobre a organização escolar, os estudantes e os professores a partir da forma como interpretam as situações e os conflitos apresentados pela história. Algumas crianças fazem uma transferência, eu diria provisória, do mundo proposto pelo programa para o seu, adquirindo elementos para se pensarem a si próprias, aos seus amigos e ao mundo em que vivem. Nalguns casos, as crianças revelam dificuldade em distinguir e em separar a realidade da ficção, ou seja, dificuldade em compreender que o programa é uma história criada e escrita por alguém, estando longe de reflectir a realidade, ainda que esta possa servir-lhe de inspiração. Há também crianças que revelam um sentido mais atento e mais crítico. É o caso de um menino que questiona o facto de uma família, aparentemente representada como sendo de uma classe social média-baixa, consumir, a todas as refeições, sumos de uma marca com preços relativamente elevados no mercado português. Ou o caso de um outro que questiona também o facto de uma das personagens, também proveniente de uma família com poucos recursos económicos, aparecer sempre vestido com roupas de marca. No que diz respeito à escola, as respostas das crianças mostram bem o lugar que este programa aí ocupa ? está frequentemente presente nos recreios mas muito raramente entra na sala de aulas. Ora, atendendo ao grande apelo desta telenovela e à sua forte repercussão social, será que a escola pode desvalorizar ou ignorar esta experiência? A intensidade com que é vivida leva-nos a pensar que, nesta prática quotidiana, podem estar presentes outros usos sociais para além daqueles ligados a passar um pouco de tempo agradável e despreocupado na companhia da televisão. Mesmo que não se disponha de um televisor e de um videogravador na instituição escolar, o que permitiria o visionamento em conjunto de um trecho do programa e a sua posterior análise critica, o professor pode sempre ouvir o telespectador que está à sua frente e interagir com ele. Através do diálogo, da discussão em grupo, pode-se compreender e avaliar a qualidade da interacção que as crianças estabelecem com a televisão e conhecer o lugar que as telenovelas ocupam nas suas vidas e na das suas famílias, tendo em vista a formação de um telespectador mais crítico e criterioso. Há mais de três anos (desde 2003) que os ?Morangos com Açúcar? habitam os quotidianos das crianças portuguesas. Do ecrã, a história saltou para o impresso (livros e revistas), invadindo as práticas de leitura; alcançou o Top na venda de CDs e lançou uma banda (os D?ZRT), influenciando os gostos musicais dos mais jovens; deu origem a ?sites? e a grupos de discussão na Internet e começou também a adornar o vestuário. Ou seja, para além das duas horas diárias de visionamento televisivo, o mesmo tópico estendeu-se a outras actividades das crianças. Isto significa que há uma geração que está a crescer marcada por um universo social e cultural ditado por um programa televisivo. É preocupante esta situação? A resposta é afirmativa caso os adultos responsáveis pelas crianças não tenham a preocupação de fazer a mediação desta experiência, de criar hábitos televisivos selectivos, de ampliar e diversificar aquele universo, oferecendo-lhes alternativas à telenovela e seus ?derivados?. É neste sentido que me parece que os ?Morangos com Açúcar? podem ter lugar na escola. Aqui, podem promover-se iniciativas que contribuam para a construção de um olhar crítico e que levem a criança a descobrir e a compreender que há emoção, que há histórias, que há leituras, que há música e que há televisão para além dos ?Morangos com Açúcar?.
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