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Dickens, Influenza e Bio-terrorismo

Numa estratégia de dar prioridade a temas na ordem do dia, interrompo a série iniciada no último texto para focar a questão da gripe das aves. Os conhecimentos existentes sobre o vírus da Influenza, responsável por esta doença, parecem de forma contraproducente estar a transportar-nos para o meio de uma fábula Dickensiana, em que somos assombrados pelos espíritos do passado, presente e futuro. No entanto, tal como no final do conto, os fantasmas da Influenza devem sobretudo sublinhar o momento único da história da humanidade em que nos encontramos, já não à mercê do mundo natural, mas com capacidade de prever e modificar o curso dos acontecimentos.
O termo Influenza é uma designação de origem italiana antiga, que associava ?más influências? ao aparecimento da gripe. Só no princípio do século XX é que os vírus foram identificados como agentes causadores de doença. Graças ao desenvolvimento da Biologia Molecular, conhecemos hoje em grande detalhe a sua natureza. Na verdade, é justo dizer que foi em grande parte do estudo dos vírus que esta ciência alicerçou os seus princípios. Os vírus representam hoje a melhor demonstração em tempo real dos princípios da evolução propostos por Darwin. De tão simples na sua composição  ? um genoma rodeado por uma cápside protectora, composta por um número reduzido de proteínas ? lançaram a confusão na definição do vivo e não vivo. Incapazes de produzir ou utilizar autonomamente energia, são parasitas intracelulares obrigatórios, que recorrem à maquinaria da célula hospedeira para perpetuar o seu genoma. A cada novo virião feito, surgem alterações no genoma viral e as que permitem uma maior eficiência de replicação tornam-se dominantes na população. E assim os vírus evoluem continuamente com uma rapidez assombrosa e, por isso mesmo, causando-nos problemas recorrentes. Não deixam no entanto de ser apenas mais um elemento do nosso ecossistema, estabelecendo relações complexas de equilíbrio com os outros seres vivos. Note-se que, para o objectivo de replicação máxima, não é mais bem sucedido o vírus que mais danos causa ao seu hospedeiro, do qual depende inteiramente.
Os vírus da influenza existem na natureza há muito tempo, infectando diversas espécies animais e causando regularmente epidemias e pandemias nas populações humanas. Conhecemo-los hoje melhor do que nunca. O genoma de diversas estirpes encontra-se sequenciado, sabemos todas as proteínas que codifica e compreendemos melhor a sua diversidade genética. Esta é a base para a prevenção das típicas epidemias anuais, através da elaboração de vacinas dirigidas às estirpes que se tornam prevalentes. Da mesma forma, podemos detectar os momentos chave da evolução que têm potencial para anteceder o aparecimento de uma pandemia. O fantasma da gripe espanhola de 1918, que se estima ter causado 50 milhões de mortos, é paradigma do que pode acontecer nestes momentos (note-se que estes e outros números assustadores são referentes a uma infecção à escala mundial, tendo por isso um impacto relativo bastante mais reduzido). Este fantasma foi literalmente ressuscitado por uma equipa de investigadores americanos que reconstruiu o genoma do vírus de 1918 a partir de tecidos preservados de vítimas de então, chegando a produzir viriões para estudo em laboratório, como publicado este mês na revista Science. Este trabalho, rodeado de preocupações quanto ao risco de libertação do vírus reconstruído, originou uma ampla discussão sobre o que constitui ciência responsável, mas tal como sugerido por uma maioria de opiniões favoráveis à sua realização, está já a dar uma contribuição fundamental para o conhecimento da origem dos vírus pandémicos e das bases moleculares da sua patogenicidade. Fruto de toda a investigação molecular efectuada nos últimos anos, percebemos hoje que é no hospedeiro natural do vírus da influenza ? as aves aquáticas ? que existe uma reserva de diversidade genética que, ao cruzar directamente a barreira que impede a infecção entre espécies ou ao combinar-se com vírus humanos durante a infecção simultânea de um hospedeiro (tipicamente porcos), tem o potencial para produzir infecções humanas em grande escala. Os alertas precoces perante o risco de emergência de um vírus com estas características, como o fantasma presente do H5N1 das aves, podem resultar na aplicação de medidas eficazes de controlo sanitário que abafem a pandemia ainda antes do seu agente surgir.
Por receio de servirem de fonte de inspiração a potenciais terroristas, os artigos científicos que descrevem o vírus da gripe espanhola foram alvo de revisão directa por uma comissão governamental americana de bio-segurança, cujas atribuições originais se resumiam a actividades de aconselhamento. Seria interessante saber qual a posição das revistas Science e Nature caso a referida comissão não concordasse com a publicação do estudo, ou ainda que critério seria aplicado a um trabalho semelhante efectuado por autores de outra nacionalidade. E assim, o espectro do bioterrorismo futuro parece teimar em assombrar a investigação biomédica...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 151
Ano 14, Dezembro 2005

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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